A morte sai à rua

Repudiada, descarnada, exorcizada, liofilizada. Na civilização ocidental, a morte passou de tabu a facto social «normal», expurgado de escândalo (a não ser mediático) ou valor metafísico. A morte da morte acompanhou a descaracterização e desvalorização do corpo humano «natural». Então, o que resta no século XXI do combate entre a vida e a morte? A…

No seu recente Manifesto em Defesa de uma Morte Livre: pelo direito de terminar a vida com dignidade e sem sofrimento, o escritor-intelectual Miguel Real coloca um desafio importante: E se olharmos para a eutanásia, não como afirmação do princípio da autonomia individual, mas enquanto expressão superior da vida social e cultural? Segundo o autor, a humanidade do corpo, cada vez mais manipulado e artificializado, cada vez mais cyborg e protético, resiste na consciência, na mente e na afirmação enquanto pessoa. Assim, é da obra cultural e social que, cada vez mais, surge um sentido para a vida, cujo legado é capaz de vencer a própria morte.

«Esta é a única transcendência na relação vida-morte: a criação de uma expressão social e institucional realizadora de uma vida humana, que a prolonga no tempo». De acordo com esta linha de pensamento, a eutanásia, «como alternativa a uma morte dolorosa e prolongada, sem qualidade de vida, não raro semi-inconsciente, devido ao processo sedativo», poderá ser uma forma de assegurar «as duas características essenciais à vida social e cultural: a liberdade e a dignidade moral». 

Toda a extensa obra que Miguel Real, romancista, ensaísta, investigador, crítico, tem produzido desde a estreia, em 1998, possui uma rara e muito louvável dimensão de intervenção cívica e ética. Profundo humanista, Real defende neste novo manifesto uma revolução cultural que acolha a legalização da eutanásia segundo os princípios da liberdade ética e da liberdade individual e o princípio ético da compaixão activa. Controversa, bem desenvolvida e sustentada, a pedir toda a atenção e de todos.

Manifesto em Defesade uma Morte Livre
Miguel Real
Parsifal
116 págs., 12.50 euros