Após 37 anos e mais de 4.850 inaugurações, Alberto João Jardim saiu de cena, passando o testemunho a Miguel Albuquerque. Deixou a 20 de Abril o carro preto oficial e conduz agora o seu Toyota Corolla branco com muitos anos em cima – viatura com que no dia seguinte a sair de funções conduziu o vice-presidente do PSD Marco António Costa à Quinta Vigia, para se encontrar com o novo presidente do Governo Regional, Miguel Albuquerque.
Agora, Jardim tem outra vida, apesar de ter mantido a segurança pessoal assegurada pela PSP. E mostra-se disponível para ser comentador político nas televisões. «Ainda ninguém me convidou», desabafava na véspera de deixar o poder. Seria uma reedição do Fogo Cruzado, programa de comentário semanal que partilhou com Almeida Santos no final da década de 90.
Oex-senhor da Madeira vai, portanto, ‘andar por aí’. Numa das últimas inaugurações, num registo humorístico, até se mostrou disponível para «lavar pratos». Mais a sério, tanto pode ir para casa brincar com os netos como transformar o Fórum Autonomia da Madeira (FAMA) num novo partido político ou até candidatar-se à Presidência da República.
«Vou ser igual a qualquer cidadão e um cidadão que se preze está atento ao que se passa à sua volta», declarou aos jornalistas no último domingo da sua governação, por ocasião da Festa da Flor. «Como cidadão liberto de compromissos públicos, tenho outra liberdade para poder actuar militantemente em função dos meus ideais. E os meus ideais foram, sempre, a luta contra o colonialismo», disse.
Agora que saiu de cena, a única certeza que tem é esta: «Vou dedicar-me a tudo aquilo que me apaixona – a luta política, escrever, debates, tudo isso… Não há planos».
Jardim já terá feito «contas à vida», como disse aos jornalistas após a audiência de despedida com Cavaco Silva, a 27 de Janeiro. Mas o lugar para o qual foi eleito na Assembleia da República não parece ser opção: pediu a suspensão do mandato alegando que está «cansado». A suspensão foi aceite.
Escrever as memórias
O homem que ficou mais tempo no poder do que Salazar, vai escrever um livro sobre os mais de 37 anos de governação. Os direitos de autor serão cedidos ao Arquivo Regional da Madeira. Se esta instituição o não publicar, então os direitos reverterão para os seus herdeiros.
Mas Jardim não quer um livro enfadonho, com discursos maçadores de actos oficiais. Pretende imprimir uma escrita leve e romanceada. O livro – empreitada para quatro a cinco anos – será apimentado com uma certa dose de ‘bilhardice’ (coscuvilhice), tão ao gosto dos madeirenses.
Os próximos tempos serão de recolha de material. Neste momento, Jardim tem cerca de 13 mil fotocópias para arrancar com o trabalho de selecção. O seu novo gabinete de trabalho será um regresso a casa. Não à sua actual morada, no alto da Pena, mas à casa onde viveu até aos 33 anos, idade em que foi presidente do Governo pela primeira vez.
A 18 de Abril, depois de uma remodelação de fundo, o espaço recebeu os móveis onde Jardim irá escrever as suas memórias. O SOL passou pela casa-museu, que recebeu nos últimos dias os derradeiros retoques para Jardim se instalar.
Situada nos números 51 e 53 da Rua do Quebra-Costas, no Funchal, a construção foi adquirida por 140 mil euros pela Fundação Social-Democrata da Madeira, a 29 de Fevereiro de 2008, para ser transformada em museu. E é lá, numa rua íngreme, que ficarão placas, medalhas, livros, pinturas, serigrafias, símbolos e outras recordações que foram oferecidas ao longo da vida pública de Jardim.
Uma vida ao longo da qual amealhou uma grande colecção de medalhas comemorativas, nacionais e estrangeiras, placas representativas das comunidades madeirenses espalhadas pelo mundo (que visitou), centenas de livros da sua biblioteca privada e recordações das mais variadas colectividades portuguesas e estrangeiras.
Gato segue com o dono
Da Quinta Vigia, Jardim levou o gato que há 13 anos foi resgatado pela neta Carlota e que, nos últimos anos, viveu na residência oficial.
O ‘Dama’, de pelagem preta e branca, foi assim baptizado pela neta, inspirada numa figura de uma história infantil. Um gato que, por várias vezes, acompanhou a sua mãe quando esta ia à missa à capela de São Paulo, no final da Rua da Carreira, paredes-meias com a casa onde nasceu o poeta Herberto Helder.
Quando a mãe de Jardim morreu, a 29 de Julho de 2006, resolveu levar o animal de estimação para a Quinta Vigia onde ficou até agora.
No dia em que Jardim deixou o poder, os seus colaboradores mais próximos deixaram-lhe elogios superlativos. Foi o caso de Nuno Olim, seu chefe de gabinete nos últimos quatro anos. «Tive a incomensurável honra, o grato privilégio, de ser seu colaborador (…). Homem de admirável inteligência, de superior formação cultural, de invejável capacidade de trabalho. Célere na decisão e pragmático na acção», escreveu no Facebook.
Em tom descomprimido, no Jornal da Madeira, Jardim afirmou que o seu último dia na Quinta Vigia decorreu com a maior normalidade, porque quando «as coisas são programadas» acontecem com naturalidade. «A vida estava a tornar-se uma rotina. Foi muito tempo. Era uma altura ideal para sair», rematou.
Jardim continua a ser presidente honorário da Conferência das Regiões Periféricas da União Europeia (UE) e da Cimeira Europeia das Regiões e Cidades – estatuto que lhe confere a faculdade de continuar a viajar ao centro da Europa, como fez com frequência nos últimos anos. As viagens são uma rotina que ainda não o cansou.