Devia ter ido há muito mais tempo, até pela ligação que tenho ao Palácio, do qual escrevi a primeira história que se publicou. É um museu pequeno – vê-se numa hora – mas acolhedor e com os objectos bem expostos. Foi seu responsável o arquitecto Pedro Vaz, que tem feito um óptimo trabalho na Presidência da República, recuperando superiormente espaços como o Palácio da Cidadela, em Cascais.
Basicamente, o Museu da Presidência alberga dois tipos de peças: as prendas oferecidas aos chefes de Estado portugueses pelos homólogos estrangeiros e os retratos a óleo dos presidentes da República Portuguesa.
Vi pela primeira vez estes quadros em 1977 ou 78, numa visita ao Palácio de Belém organizada pelo Centro Nacional de Cultura, em que fiz de cicerone. Convidou-me a Helena Vaz da Silva, que na altura presidia ao CNC.
Os retratos a óleo dos (até aí) 12 presidentes desde a proclamação da República, enquadrados por molduras douradas de razoáveis dimensões, estavam expostos na Sala Azul, uma das salas nobres do corpo principal do Palácio presidencial.
Mais tarde voltei ao Palácio a convite de Ramalho Eanes, que me convidou para escrever a história do edifício, sobre a qual não havia qualquer livro publicado – por estranho que hoje pareça. É claro que, nesse período, percorri demoradamente – por diversas vezes – as salas e corredores, e detive-me a olhar com mais atenção para os quadros.
Os melhores retratos de presidentes são, sem dúvida, os de Columbano, que pintou Teófilo Braga, Manuel de Arriaga e Teixeira Gomes. Mas também há excelentes quadros de Henrique Medina, representando Sidónio Pais, Canto e Castro, António José de Almeida e Carmona.
Depois do 25 de Abril é que a coisa começou a complicar-se. Francisco Mata pintou Spínola e decidiu fazer um quadro naïf, com o general em grande plano e o palácio ao fundo; Joaquim Rebocho fez um péssimo retrato de Costa Gomes, em que este parece sentado numa sanita; Luís Pinto Coelho pintou Eanes de um modo que o despersonaliza, pela exagerada perfeição; e Paula Rego foi infelicíssima a pintar Sampaio, mostrando que o retrato não é o seu forte: toda a figura é estranha e as mãos parecem atacadas por uma artrite em estado avançado. Os sapatos são a única coisa que se salva neste quadro.
Falta falar de Mário Soares, que optou por Júlio Pomar – cujo quadro suscita mixed feelings. Por um lado, capta magnificamente o movimento corporal de Soares, na sua conhecida descontracção. Mas, por outro, não parece um produto acabado. Parece um esboço para um retrato – e não um retrato. A sua presença ao lado dos outros, metido ainda por cima numa moldura solene, causa alguma perplexidade e surge quase como uma provocação.
Mas o que mais me surpreendeu na visita ao Museu da Presidência não foi a qualidade dos retratos – foi, sim, a súbita aparição de dois novos presidentes da República. De facto, ali figuram dois quadros que não estavam na galeria dos retratos dos presidentes quando eu a visitei das primeiras vezes: os de Mendes Cabeçadas e Gomes da Costa.
E vê-se à légua que os quadros não pertencem àquele filme. Enquanto os outros, melhores ou piores, resultaram de encomendas expressas e têm as medidas certas, estes foram pinturas apanhadas aqui e ali e tiveram de ser adaptadas à força. Pegaram em telas existentes e meteram-nas em molduras iguais às outras, para o que foi necessário atamancar acrescentos (no caso de Cabeçadas, o quadro tem para aí três palmos menos do que a medida da moldura).
Dois novos presidentes da República foram, pois, acrescentados à História de Portugal. Interroguei-me sobre o porquê de tão bizarro facto e julgo que encontrei o motivo.
Logo a seguir ao 25 de Abril, estranhei o facto de Spínola e Costa Gomes serem considerados presidentes de pleno direito – enquanto dois outros militares que ocuparam o cargo em circunstâncias semelhantes, Cabeçadas e Gomes da Costa, tinham sido esquecidos.
Recordo que Spínola e Costa Gomes foram escolhidos pelo poder militar que saiu da revolução do 25 de Abril de 1974, nunca tendo sido eleitos pelo povo. Ora, foi essa exactamente a situação de Cabeçadas e Gomes da Costa, saídos da revolta militar de 28 de Maio de 1926, que exerceram a presidência por curtos períodos e também nunca foram sufragados.
Sucede que, após o 25 de Abril e a onda de entusiasmo que se seguiu, ninguém pôs em causa a legitimidade de Spínola e Costa Gomes nem o facto de não terem sido eleitos – e os seus quadros foram pendurados solenemente em Belém.
Mas a questão, como não poderia deixar de ser, veio mais tarde a colocar-se. Alguém na Presidência terá dito: por que é que uns são presidentes e os outros não, estando todos em pé de igualdade? Por que é que Spínola e Costa Gomes são filhos, e Cabeçadas e Gomes da Costa enteados? Não ocuparam todos o cargo na mesma situação, em período revolucionário, com a Constituição suspensa, indicados pelo poder militar?
Posto isto, para não retirarem Spínola e Costa Gomes da parede – o que daria uma enorme bernarda – acrescentaram dois nomes à lista presidencial e foram catrapiscar os retratos de Cabeçadas e Gomes da Costa sabe-se lá onde.
E assim se reescreveu a História. Dois homens que abriram caminho à chegada de Salazar ao poder, mas que o Estado Novo esqueceu, viram-se subitamente reabilitados pela 3.ª República. Não pelos seus feitos, mas para darem cobertura à presença de António de Spínola e Francisco da Costa Gomes no Museu da Presidência do Palácio de Belém.