Sete mil mortos e cerca de treze mil feridos, entre cem mil homens mobilizados para a frente de combate. No regresso, um destes relata: “Ninguém no cais. (…) No Apolo ocupei um lugar de cadeira e reparei que os circundantes me olhavam de soslaio. Na Avenida reparei que para meter figura teria que me uniformizar à paisana. Em vão busquei um sorriso na multidão. (…) Francamente, para vir para Lisboa não vale a pena a gente ter-se batido. (…) Como isto dá vontade de fugir!”.
Sem glória popular, sem a merecida reparação financeira ou institucional, o soldado português regressa da Primeira Guerra para a miséria e para o esquecimento. No caso dos mutilados, inválidos e traumatizados, a luta por um tratamento condigno é infrutífera. Recebidos em condições miseráveis, desprezados pelos políticos, engolidos pela burocracia, eles serão ignorados mesmo pelos historiadores nacionais, que, até agora, se interessaram quase só por temas circunscritos ao tempo de campanha de guerra.
Tal como o orientador Nuno Severiano Teixeira refere no prefácio, a tese de doutoramento em História Contemporânea de Sílvia Correia alia história social e história cultural. Entre a Morte e o Mito: Políticas da Memória da I Guerra Mundial (1918-1933) aborda o conflito a partir do contexto económico e social do combatente (from below) e das representações culturais e simbólicas das experiências de guerra. A sua principal inovação é a tentativa de dissecação do mito construído sobre a campa do soldado português, tornado desconhecido, trágico e silencioso por sucessivas políticas da memória.
Na primeira parte, analisa-se o retorno e (insatisfatória) reintegração dos ex-combatentes, bem como o seu movimento organizativo. Na segunda parte, compõe-se um “mapa da memória”. Sílvia Correia analisa o insucesso da I República “na delineação e consolidação do mito da experiência de guerra”. Defende que o regime republicano caiu porque se mostrou incapaz de unir uma nação em crise em torno de um aglutinador simbólico. Entre a Morte e o Mito sinaliza um mal nacional: o papel preponderante do silenciamento e do silêncio na construção da memória colectiva. Contraria-o numa tese notável, que se espera faça escola.