À semelhança de tantos conventos nacionais, no Mosteiro de Jesus de Aveiro a entrada do açúcar faz-se pela botica. Inicialmente muito valorizado como elemento fundamental na elaboração de medicamentos ou como suplemento energético dado aos doentes, este doce ingrediente era muito utilizado pelas irmãs boticárias. No entanto, é na cozinha que a sua utilização tem um efeito verdadeiramente extraordinário. Hoje sabemos que a utilização abundante de açúcar, que veio substituir o mel como adoçante, só foi possível porque houve o fomento da sua produção nos territórios recém-descobertos. De melhor clima que o território continental, a ilha da Madeira demonstrou uma excelente capacidade para a produção deste produto.
Remonta a 5 de Dezembro de 1452 o contrato estabelecido entre o Infante D. Henrique e o Capitão de Caravela Diogo de Teive para a construção de um engenho de água para a produção de açúcar. No documento ficava estabelecida a obrigação da entrega de um terço da produção ao poder real, o qual, por sua vez, o doava como ‘esmola’ a várias instituições, como hospitais e mosteiros. O Mosteiro de Jesus de Aveiro estava entre os beneficiários, daí a relativa abundância do açúcar naquele espaço religioso.
A junção da folha de hóstia ao doce de ovos acontece de uma forma criativa e reveladora da cultura que caracteriza o imenso espelho de água reflectido pela ria. Com a aparência de búzios, de conchas ou de peixes, os ovos-moles mostram a ligação da terra ao mar e do mar à terra pela ria que se espraia por aquele território. Outra manifestação dessa confluência é a comercialização da massa de doce de ovos (ovos-moles sem a folha de hóstia) em barricas de madeira decoradas com pinturas de barcos moliceiros, o barco mais característico da Ria de Aveiro.
Pela antiguidade da receita, pela riqueza da história, pelo conteúdo cultural que reflecte, os ovos-moles constituem um elemento fundamental na identidade gastronómica de Aveiro. Consciente disso, um grupo de 24 amigos aveirenses decidiu fundar a Confraria dos Ovos-Moles de Aveiro em Março de 2009, com a missão de promover, divulgar e defender o doce do seu coração, tendo como lema «Juro levar os Ovos-Moles de Aveiro ao Mundo inteiro, se não os comer primeiro!».
Com actividades muito diversificadas, esta Confraria procura juntar a dignificação dos Ovos-Moles a iniciativas de solidariedade social. Neste momento, a Confraria dos Ovos-Moles tem prevista no seu vasto plano de actividades a edificação de um grande monumento aos ovos-moles, para a qual está a desenvolver inúmeras acções de angariação de fundos. A primeira actividade acontece no próximo dia 4 de Julho. Trata-se da ‘Caminhada dos Canais’ de 8 Km cujas verbas angariadas serão distribuídas em igual percentagem pelos Bombeiros Novos e Bombeiros Velhos de Aveiro e o futuro monumento.
Importa também falar do traje amarelo debruado a castanho de corte simples e elegante e do chapéu que parece, verdadeiramente, um ovo-mole. A insígnia de prata que cada confrade ostenta no seu peito traduz a silhueta de uma freira, imagem simbólica e representativa de quem deu ao mundo tal doce tesouro. Nas palavras dos Confrades dos Ovos-Moles de Aveiro «esta jóia de material nobre mas sóbrio e de cariz contemporâneo reflecte o conceito e o espírito desta confraria, permitindo comunicar a imagem da tradição que importa promover e perpetuar».
A história dos ovos-moles de Aveiro confunde-se com a história e a cultura da cidade. Após o encerramento do Mosteiro de Jesus em 1874, logo a seguir à morte da última religiosa, o mundo teve a sorte de a receita não se perder na voragem das mudanças que abalaram o nosso Portugal do século XIX. Valeu a Aveiro e a todos os que apreciam os ovos-moles a receita ter ficado nas mãos de uma empregada da última religiosa. Através desta, passou do espaço monástico para a cidade. A sua produção evoluiu até à actualidade, destacando-se o reconhecimento nacional e europeu como Indicação Geográfica Protegida (IGP), processo que atesta a sua singularidade e genuinidade. A APOMA (Associação dos Produtores de Ovos-Moles de Aveiro), entidade responsável pela dinamização da qualificação deste produto, é uma das instituições com as quais a Confraria de Aveiro estabelece relações privilegiadas de modo a contribuir para a crescente valorização do produto.
Aveiro, cidade abraçada pela ria e encostada ao mar, vibra de vida, resplandece de cor, exibe os seus edifícios de Arte Nova, vive a pujança do doce em contraste com o salgado que se sente nas salinas desde sempre tão valorizadas. Aveiro entra no mundo pela diversidade e riqueza dos que ali vivem. Dar o melhor que se faz na cidade é sempre vontade de bem receber. E os confrades sabem que na memória daqueles que visitam Aveiro ficará gravado o prazer de saborear um ovo-mole numa mesa onde a partilha deste tesouro doce é também a partilha de um bem maior, a amizade.
* presidente das confrarias gastronómicas portuguesas