Salter, o bissexto

A dado passo do mais recente romance de James Salter, uma personagem justifica por que prefere Tolstói. Em Infância, o primeiro texto publicado pelo autor russo, há um pequeno capítulo em que descreve as duas únicas paixões do seu pai: “Nós pensamos que ele vai dizer a família e as terras, mas afinal são o…

A dado passo do mais recente romance de James Salter, uma personagem justifica por que prefere Tolstói. Em Infância, o primeiro texto publicado pelo autor russo, há um pequeno capítulo em que descreve as duas únicas paixões do seu pai: “Nós pensamos que ele vai dizer a família e as terras, mas afinal são o jogo e as mulheres”. A capacidade de produzir elementos desconcertantes que temperam o enredo convencional e o associam à riqueza imaginativa da vida real é também a melhor característica dos seis romances de Salter, desde a estreia, em 1957, com The Hunters, escrito a partir da experiência como piloto da força aérea norte-americana na Guerra da Coreia. O aproveitamento autobiográfico é outra das qualidades partilhadas com Tolstói, de cuja obra se diz – como se pode dizer da de Salter – que representa um extenso diário mantido ao longo de 50 anos.

James Salter (n. 1925) é um escritor para escritores, ou seja, quase não vende livros, mas os pares e a crítica idolatram-no e um grupo de leitores cultua-o em segredo. O facto de ser um escritor bissexto, fiel só a si mesmo, alimentou o fenómeno. A Sport and a Past Time (1967), sobre a paixão entre um estudante americano e uma rapariga francesa (contada em flashback fantasioso por um narrador anónimo), emparelhou-o com Henry Miller nas insistentes referências sexuais. A sua obra tem também traços de Fitzgerald e Hemingway (na atenção à trajectória heróica mas assombrada das personagens e na elegância depurada mas descontraída da prosa, herdada também do cinema) e de André Gide (mais um tributo à França). A publicação de Tudo o Que Conta, de 2013, marca a estreia de James Salter em Portugal.

Após lutar no Japão, no final da Segunda Guerra, Philip Bowman regressa a NY, torna-se editor literário e dedica-se a sentir-se vivo, sobretudo pela prática do jogo sexual. Casa-se, divorcia-se, circula no meio mundano e literário, é traído, flirta, faz sexo, mais sexo. A crítica aponta um lirismo erótico singular em Salter. Tudo o Que Conta exibe-o como raio-X retrospectivo da densidade das personagens através de cenas e actos triviais. Bissexta, a vida aqui é feita de som, fúria e sexo. Salter é um especialista no heroísmo da banalidade carnal.

Tudo o Que Conta

James Salter                 

Livros do Brasil

352 págs.,

16.60 euros