Depois da passagem pelo Primavera Sound – onde além de tocar o disco de estreia fará uma actuação de spoken word na quinta – seguem-se outras 33 datas só na Europa, grande parte delas já esgotadas. E não é para menos: Patti Smith é uma das poucas lendas vivas da história da música, com o seu trabalho a ecoar a diferentes gerações de artistas. Johnny Marr, por exemplo, costuma dizer que a cantora foi uma influência enorme para si e para a banda que criou com Morrissey, os Smiths. Já Michael Stipe, dos R.E.M., também admite várias vezes que decidiu tornar-se músico no dia em que ouviu pela primeira vez Horses.
O que torna então este disco unanimemente tão especial? As razões são mais do que muitas. Logo para começar, o 'embrulho' andrógino prende o olhar de qualquer um. Fotografada por Robert Mapplethorpe – com quem a artista manteve um longo e intenso romance quando os dois viviam no Chelsea Hotel, e cuja história está homenageada no romance autobiográfico Apenas Miúdos (ed. Quetzal, 2010) -, Patti Smith aparece vestida de homem na capa do disco, uma forma encontrada para jogar com as próprias percepções que tinha (e tinham) de si. “Desde muito cedo, 4, 5 anos, comecei a achar que era extraterrestre. Era um conforto pensar que vinha de outro planeta porque sentia-me desconectada do resto do mundo – era muito alta e muito magra e não me parecia com ninguém. Nem mesmo com nenhum membro da minha família”, contou ao Guardian.
Poesia ao serviço da música
Além da imagem de capa, essa sensação também está exposta em 'Birdland', canção com mais de nove minutos em que Patti Smith declama, de forma visceral, grande parte da letra, unindo assim duas paixões: música e poesia. Esse diálogo com a poesia é, aliás, recorrente na obra da cantora, até porque, quando se mudou para Nova Iorque, o seu desejo maior era mesmo tornar-se poetisa.
Mas em Horses é a fortíssima declaração de intenções que abre o disco, com o tema 'Gloria', que ninguém esquece: 'Jesus died for somebody's sins, but not mine (Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não os meus)'. A afirmação – chocante e sem precedentes para muitos – além de elevar Patti Smith ao estatuto de pioneira da cena punk rock nova-iorquina, revelou uma artista provocadora que acreditava estar ao serviço de algo maior do que si própria: a arte. “O meu trabalho reflecte o facto de me sentir totalmente livre como artista e poder tomar a posição que quiser. (…) Quando fiz Horses queria mesclar a poesia com paisagens sonoras e destacar a palavra escrita com o mesmo imediatismo e frontalidade do rock and roll”. O feito foi alcançado e, se na altura, a rejeição de Patti Smith à religião foi incompreendida, no final de 2014 as 'feridas' ficaram saradas quando o Papa Francisco a convidou para actuar no concerto de Natal do Vaticano.
O som cru de John Cale
Como queria um som cru para o trabalho, Patti Smith chamou John Cale para produzir Horses por admirar essa característica nos discos que o músico lançou a solo depois dos Velvet Underground. Mas o par não se deu nada bem, ao ponto de, na altura, a cantora descrever as sessões em estúdio com Cale como 'uma temporada no inferno'.
“Tivemos tantas discussões que, um dia, ele perguntou-me porque o tinha escolhido. Respondi 'porque adoro o som dos teus discos' e ele partiu-se a rir. 'Sua idiota, então devias ter escolhido o meu engenheiro de som', respondeu-me”, recordou ao jornal britânico. Hoje, porém, Patti Smith reconhece que era uma miúda inexperiente (tinha 28 anos) e admite que se não fosse Cale nunca teria conseguido criar 'Birdland', a sua “grande experiência enquanto performer” no álbum.
Quando Horses saiu, em Novembro de 1975, foi recebido pela crítica como sendo “um portento” “inspirador” e “catalisador”, influenciando bandas ao longo dos anos como os Clash, Ramones, Sonic Youth ou The Cure. Ainda hoje o registo continua a ser considerado uma referência na história da música, com revistas como a Rolling Stone, a New Musical Express ou a Time a inclui-lo na lista dos melhores álbuns de todos os tempos. Em 2009, a Biblioteca do Congresso norte-americano conservou a gravação original do disco, classificando-o de “importante relevância cultural, histórica e estética”. Quase 40 anos depois, a ambição de Patti Smith foi cumprida: “Sempre vi Horses como uma obra mais virada para o futuro do que para o passado”. Ainda assim, é o estrondoso passado de Patti Smith que se vai celebrar na edição deste ano do Nos Primavera Sound, que começa já na próxima quinta.