Máquina de lama

Imagine-se sedento e de boca aberta sob uma torneira. Imagine que a gota pela qual tanto suspira nunca chegará a cair porque ficou entalada a meio do percurso. Blop, blop, e nada. Para Umberto Eco esta é a metáfora para retratar a actual relação do público (esclarecido) com os média. A imprensa divide-se em títulos…

A pairar sobre todos está a internet, ave de rapina que suga e cospe tudo e que ninguém consegue amestrar, nem sequer abrandar. Entretanto, alastra o boato, uma gangrena que corrompe o espaço público. Vamos a saber: quem fechou a torneira de segurança?

Imagine que Eco transformou esta visão tão crítica (explanada de forma muito clara numa entrevista recente ao El País) num romance de leitura paródica da História e sobre a decadência do jornalismo e dos meios políticos, religiosos e financeiros italianos. Número Zero, que trepou pelas tabelas das livrarias europeias mal foi lançado, é tudo isto e mais o essencial: imaginação pura, erudita e muito divertida, baseada na realidade histórica.

Quem matou Romano Braggadocio, jornalista obcecado por revelações escandalosas, na Via Bagnera, a rua mais estreita de Milão? Porque foi ele integrado em 1992 na equipa do diário Amanhã, cujos dez números zero previstos serviriam apenas para promover o principal accionista, o Comendador Vimecarte? E se Mussolini não morreu e a Igreja lhe encobriu a fuga? Que efeitos isso poderá ter tido na Itália dos quase 50 anos seguintes? Lá para o fim do livro, há uma reportagem da BBC que atribui um selo de seriedade a uma boa parte das paranóias conspirativas de Braggadocio. Mas no Número Zero o mais importante nem é a verdade; antes o contraponto entre um delírio bem intencionado e o delírio inescrupuloso de Simei, o director do Amanhã.

Segundo Simei, o grande furo obtém-se graças à manipulação de revelações sobre o passado e à difusão de hipóteses, insinuações e suspeitas generalizadas: «Aqui há alguém que pesca em águas turvas e, mesmo que não saibamos o que é, vamos decerto meter-lhe medo». Afinal, «não são as notícias que fazem o jornal, mas o jornal que faz as notícias». O Amanhã será uma máquina de lama usada para ameaçar, chantagear, desacreditar e garantir um poder oculto.

Braggadocio faz parte do sistema, mas subverte-o: «Vivemos na mentira e, se sabes que te mentem, tens de viver na suspeita. Eu suspeito, suspeito sempre». A assistir a tudo está o narrador, Colonna, um escritor falhado e «perdedor compulsivo», infiltrado no Amanhã. A sua bonomia e apatia e o jogo charadístico do que relata servem de máscara para o peso e o rigor da intervenção crítica de Eco. Enquanto o romancista enrola e desenrola subenredos, e delicia e entretém o leitor, deixa bem claro: «O engano é o estado da mente e a mente do Estado».

Número Zero
Umberto Eco
Gradiva
164 págs., 12 euros