Como se deu o seu encontro com Kapuscinski?
Quando nos conhecemos ele era um repórter e escritor célebre, reconhecido internacionalmente, e eu era um jovem jornalista de 30 anos. Trabalhava na Gazeta Wyborcza, o jornal mais importante da Polónia, e ele também era colaborador. Gostou de alguns dos meus textos e pediu a um editor para nos apresentar.
Partiu dele?
Eu nem teria coragem, ainda que ele não fosse uma personagem faraónica de difícil acesso. Convidou-me para termos uma conversa em casa dele sobre um texto que escrevi sobre as FARC. Primeiro nasceu uma relação entre mestre e jornalista e depois, com os anos, transformou-se numa amizade.
Começou com uma afinidade profissional?
Começou pelo interesse em comum pela América Latina, isso foi fundamental. Ele também notou que eu tinha uma posição ideológica diferente dos jornalistas da minha geração. A Polónia é um país muito conservador, mesmo quando se trabalha num jornal liberal. Ele sentia essa empatia por um ponto de vista parecido com o dele, uma maneira parecida de pensar sobre o mundo. Kapuscinski foi um grande entusiasta do subcomandante Marcos, do México, quase como um adolescente fascinado pelo Che Guevara. Havia estes pontos de contacto.
Porque sentiu vontade de escrever esta biografia depois de ele morrer?
Quando ele estava vivo nem pensei nisso. Foi meu mentor e meu amigo, não o considerava objecto de estudo. Agora tenho pena disso. Se tivesse pensado nisso antes, perguntaria muitas coisas que não perguntei. Foi uma amiga que me deu pela primeira vez a ideia, depois da morte dele, porque o conheci bem e pensávamos da mesma maneira. Podia entender melhor. Não tinha muita vontade, mas reli coisas dele e comecei a fazer algumas entrevistas só para ver se podia dar certo. Acabei por ser sequestrado: foi tão fascinante que me dediquei durante três anos a isto, um trabalho full time, viajei para 11 países…
Os mesmos sítios onde ele tinha estado?
Sobretudo na América Latina e África. Não fui a todos, também não tinha intenção de fazer uma biografia académica. Interessava-me outra coisa. É importante perceber o que aconteceu na Polónia com a transição política, porque cada época tem a sua maneira de contar a História. Quando se muda de um sistema político para outro, começa-se a contar muitas coisas falsas sobre o passado e muito fora do contexto. Na Polónia já democrática, muitas pessoas começaram a falar do comunismo e das pessoas que foram fascinadas pelo comunismo como se fossem traidores ou com um tom de acusação. Achei muito importante contar a história do Kapuscinski, que é também a história dessa geração que ficou fascinada pelo comunismo e que tinha muitas razões para ser assim. Depois da II Guerra Mundial, o país foi todo destruído mas havia sobretudo um cemitério das ideias. O socialismo e o comunismo pareciam a única ideia nova que não tinha responsabilidade pelo que estava a acontecer no mundo.
Então acha que o trabalho dele foi sempre influenciado por esse fascínio?
Sim, muito. Em primeiro lugar porque ele queria estar sempre ao lado dos oprimidos e dos marginalizados. Sem esse fascínio pelas revoluções ele não teria partido para acompanhar eventos tão importantes como a queda dos impérios coloniais de África. Foi comunista por convicção, não para fazer carreira. Depois da desilusão com o estalinismo, muita gente se sentiu enganada pelo partido e pelos abusos cometidos. É possível que Kapuscinski tenha partido para o Gana, Congo e por aí fora à procura de revoluções mais puras, mais românticas, menos burocratizadas. Encontrava isso na Tanzânia de Julius Nyerere, no MPLA de Angola ou em alguns movimentos guerrilheiros da América Latina. E ele não fingia ser um jornalista objectivo. Em Angola, por exemplo, defendia a posição política do MPLA. No livro Mais Um Dia de Vida (publicado em Portugal pela Tinta da China) há aspectos ideológicos, mas o mais importante é mesmo aquele interesse pela queda de um mundo e o nascimento de outro. Ele cresceu nos anos da II Guerra Mundial, mas era criança, tinha uma memória com muitos espaços em branco. A experiência em Angola permitiu que compreendesse melhor o que era a guerra.
Durante a investigação sentiu que estava perante uma outra pessoa?
Não no sentido de conhecer um homem bom e depois descobrir que é mau. A investigação levou-me apenas a descobrir um homem, um escritor e um jornalista muito mais complexo. No aspecto político nem há surpresas, a polémica não vem daí. O problema é que a Polónia, como já disse, é um país conservador e o mainstream político não concorda com o pensamento de Kapuscinski – o paradoxo é que ele acabou por ser sequestrado por este mainstream como o homem importante com impacto internacional. Vivia-se uma dupla realidade: admirar Kapuscinski e ao mesmo tempo ignorar o que ele dizia e o que ele escrevia. Para desarmar a mensagem política dele, punham-no num altar. O célebre escritor, o grande jornalista, mas esta elevação servia para esconder a mensagem ideológica clara que ele deixou. Se olhassem a sério para o que ele escrevia, nenhuma destas pessoas o poderia admirar ou elevar a herói. A polémica, aquilo de que me acusam algumas pessoas, é de o ter apresentado como sendo de esquerda. Mas Kapuscinski nunca escondeu o seu pensamento. E quem defende a biografia diz que me limitei a tirá-lo do mainstream e a devolvê-lo ao seu lugar. Ele não pode ser visto apenas como um monumento sem mensagem política. Aquilo que ele defendeu continua a ser importante num mundo em que o neo-colonialismo renasce disfarçado de programas de ajuda económica. Despolitizar Kapuscinski é um erro e tem uma intenção política.
Não acha que o descredibilizou ao dizer na biografia que ele ficcionou reportagens?
Concluí que ele cruzava muitas vezes a fronteira entre jornalismo e literatura e algumas pessoas começaram a dizer que ele era mentiroso e inventava. Não acho isso justo. Descobri que certas parte de O Imperador (Campo das Letras) não são factuais mas não deixa de ser um livro maravilhoso que não fala apenas sobre a Etiópia – é um tratado sobre o poder absolutista, conta uma história que é universal. Está construído com depoimentos dos aios do imperador Hailé Selassié, mas ninguém pode acreditar que aqueles homens simples se expressassem naquela linguagem barroca sofisticada. Isso não significa que se possa dizer que é mentira. É uma obra literária.
Mas apresentada como jornalismo.
Isso foi numa certa época, nos anos 70. Se ele avisasse que era uma alegoria ou uma metáfora, provavelmente não seria publicado. Toda a gente lia isto não como sendo sobre a Etiópia mas como uma crítica ao governo da Polónia.
Foi uma maneira de poder publicar?
Sim, era a crítica possível. O problema começou quando o livro foi publicado noutros países. Quando saiu nos EUA, toda a gente considerou como não-ficção e como um livro sobre a Etiópia. Pode-se acusar Kapuscinski por não ter deixado isso claro, mas também é estranho que ninguém, tantos críticos intelectuais, tenha percebido isso. Deram-lhe o título de repórter do século XX e tudo. E foi esse título que o colocou numa determinada prateleira.
Sem esse título poderíamos olhar para a obra dele de outra maneira?
Talvez se pudesse considerar literatura. O título foi por um lado um reconhecimento internacional, mas por outro lado foi uma armadilha. Começaram a falar sobre o repórter do século XX e a partir daí como é que ele poderia vir dizer que só parte da obra dele é que era jornalismo e o resto era literatura? Ficou preso à lenda e ao mito. E eu, para ser justo com Kapuscinski mas também com a minha obrigação de jornalista, tomei uma decisão intelectual: passar a considerar algumas obras dele enquanto literatura.
Não fica com um valor completamente diferente?
É uma literatura muito boa. E a literatura pode fazer isso: usar factos reais e misturar com ficção. O jornalismo não pode. Não podem é achar que com isso estou a dizer que ele era mentiroso. Foi uma grande testemunha do século XX. Viveu a II Guerra Mundial enquanto criança, a construção do socialismo na Polónia, a queda dos impérios colonialistas em África, golpes de estado, movimentos revolucionários na América Latina e por aí fora. Posso continuar a recomendar os livros de Kapuscinski a jornalistas, para que aprendam a escrever e aprendam a pensar o mundo. Mas não posso recomendar como manual do ofício. É demasiada ficção para que seja um exemplo de jornalismo.
Isso para si foi uma desilusão?
Não tive essa sensação. Também compreendo que ao chegar ao fim da vida, depois de o mundo o ter elevado como referência, era difícil dizer: olhem, eu era jornalista mas a partir de um certo momento comecei a fazer literatura a partir das minhas experiências. Era impossível. O único momento em que o poderia ter feito foi quando saiu o primeiro livro nos EUA, em 1983, mas naquela época não havia estes debates que agora existem sobre jornalismo. E há que compreender o contexto da escola polaca de reportagem. Na época comunista não se podia praticar a crítica social e política através de artigos. Como não se podia falar directamente, a imprensa procurava outros caminho. Quando se estava a contar a história de uma pequena aldeia, isso servia para fazer uma crítica global. Construíam-se personagens fictícias a partir de duas ou três personagens reais para não comprometer ninguém. Quando começaram a traduzir os livros dele para outros países, até certo ponto ele nem devia estar consciente que outros podiam não entender isso. Esse questionamento só surgiu muito tempo depois.
Alguma vez sentiu desconforto por estar a fazer este trabalho?
Nunca me arrependi mas não consegui entender a hostilidade que a biografia provocou. Esperava polémicas, não vou dizer que não. Mas não esperava ser tratado como se fosse um traidor do Kapuscinski e quase um traidor da pátria. Os polacos adoram monumentos e heróis e não é suficiente que alguém seja um grande escritor. Tem de ser perfeito em tudo. O livro acabou por abrir caminho e mudar o paradigma, é uma biografia dentro da tradição anglo-saxónica, com aspectos críticos. Na Polónia as biografias eram feitas como as dos santos.
Já pensou no que Kapuscinski diria se lesse esta biografia?
Acredito que a biografia deve ser escrita depois de a pessoa ter morrido. A vida já chegou ao fim e o carácter da biografia de alguém vivo é diferente, nunca se consegue ser totalmente isento de pressões. O autor da biografia deve estar em condições de ser livre e não pensar nisso.
Disse que anda a ler um livro que afirma que o jornalista está sempre a trair alguém. Corre o risco de sentir que traiu o biografado?
Há dois momentos no processo de trabalho. A empatia, quando está a tentar compreender bem os pensamentos, as acções. É preciso entrar nos sapatos do outro. Mas para escrever é preciso sair desses sapatos. Esse momento é sempre um acto de traição. A teoria é essa e tem um julgamento moral muito duro, como se andássemos todos a fazer uma coisa que é moralmente indefensável. Mas se somos comprometidos com a profissão e com a verdade, porque não? Ainda ando a pensar nisso, não cheguei a uma conclusão. Mas é bom termos a consciência de que aquilo que andamos a fazer é pelo menos ambíguo. Com Kapuscinski tentei apenas explicar a vida dele, as decisões, e espero ter sido justo. Tratei de resolver muitas dúvidas a favor dele, muito mais do que o contrário.