O fascínio do Mal

Como pensar e contar por palavras o impensável e o indizível? Albert Camus foi um dos primeiros a tratar na ficção o tema do nazismo, em 1947, na metáfora filosófica A Peste. Entretanto, entre o testemunho em bruto dos sobreviventes surgiam obras-primas de realismo (por Primo Levi, Robert Antelme, Elie Wiesel, Imre Kertész ou Jorge…

Como pensar e contar por palavras o impensável e o indizível? Albert Camus foi um dos primeiros a tratar na ficção o tema do nazismo, em 1947, na metáfora filosófica A Peste. Entretanto, entre o testemunho em bruto dos sobreviventes surgiam obras-primas de realismo (por Primo Levi, Robert Antelme, Elie Wiesel, Imre Kertész ou Jorge Semprun), uma literatura das ruínas, com valor inquestionável. Em 1949, Theodor Adorno decretou o fim da poesia depois de Auschwitz. Contudo, com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais possível romancear o drama absoluto do Holocausto, enquanto se tornava cada vez menos imperativa uma correcta ou rigorosa abordagem ética. Em 2006, As Benevolentes, de Jonathan Littell, retrato romanceado da perspectiva e psicologia de um oficial das SS, fechou o ciclo. A ficção apoderara-se da História, penetrava por si mesma nos interstícios da besta e exibia-os sem pudor.

Vem isto a propósito de A Zona de Interesse, o novo romance de Martin Amis. Nele se narra, a três vozes (de dois oficiais e de um sonderkommando), o quotidiano, em Agosto de 1942, num “manicómio enorme”, o sub-campo de Monowitz (complexo industrial da IG Farben, nesse ano transformado no campo de extermínio Auschwitz III), nos escritórios e domicílios dos funcionários e oficiais. Amis já escrevera sobre o nazismo (A Seta do Tempo, 1991 ), o estalinismo e os gulag (Koba, o Terrível e Casa de Encontros). Agora, defronta o “carácter excepcional do Terceiro Reich”: “a sua inflexibilidade, (…) a eléctrica severidade com que repele o nosso contacto e a nossa compreensão” (do posfácio).

Mais do que na explicação, insiste na aproximação ao enigma dos actos humanos contra-humanos, à infiltração do absurdo na realidade e na História. É assim que Paul Doll, o comandante SS, “um homem normal com sentimentos normais”, se questiona: “Se aquilo que estamos a fazer é tão bom porque é que cheira tão atrozmente mal?”. E que o sonder Szmul gere a eficácia das piras de cadáveres, mas enterra as memórias sob uma groselheira. E que o tenente Thomsen sobrevive, na posse de um Klee e um Kandinsky. A Zona de Interesse põe o Mal ao espelho, despe-o e põe-no a mexer e a falar. Mas, quem quer, de facto, vê-lo assim?

A Zona de Interesse

Martin Amis

Quetzal

500 págs.,

18.80 euros