Tenho acompanhado à distância, como muitos portugueses, a carreira de Alexandra Lencastre. Lembro-me de que, no início da SIC – portanto, há 23 anos -, a minha amiga Conceição Lino, que na altura era jovem repórter da estação, me disse certo dia: “Vou agora entrevistar a Alexandra Lencastre”. Naquela época Alexandra só fazia teatro e o seu nome ainda não me era familiar. Mas pelo modo respeitoso como Conceição o pronunciou, como se falasse de uma diva, percebi que se tratava de uma actriz já consagrada.
Mais tarde vi nas revistas sociais que se casou com o actor Virgílio Castelo, iniciando um conto de fadas à portuguesa. Achei que o enlace iria resultar, mas não. Seguiu-se Piet-Hein Bakker, um holandês louro e risonho, e houve de novo a ilusão de que se trataria de uma união para a vida. Mas voltou a falhar. A partir daí, através daquilo que começou a aparecer nas capas das revistas do coração, fiquei com a ideia de que Alexandra tinha entrado na fase do experimentalismo no que respeita ao género masculino.
Hoje, como se depreende das suas próprias palavras, Alexandra Lencastre não tem uma vida afectiva estável e não se considera uma pessoa feliz. Mas no mundo do espectáculo isso está muito longe de ser um exclusivo seu. Acontece à maior parte das figuras. Nesse meio, a estabilidade familiar ou amorosa não faz regra. E as depressões abundam.
Voltemos à mesa do restaurante. Apesar da distância a que me encontrava do pequeno televisor situado num canto da sala junto ao tecto, fui podendo admirar os indiscutíveis dotes de actriz de Alexandra Lencastre. E aí ocorreu-me a seguinte ideia: esta mulher, possivelmente, já só sabe viver as personagens que interpreta, não sabe viver a vida real.
No ecrã, no papel de uma personagem qualquer de telenovela, Alexandra parecia estar totalmente à vontade. Mas na vida real isso terá deixado de acontecer. No 'papel' da sua vida, parece não saber movimentar-se, não saber escolher, não saber relacionar-se. Falta-lhe o guião escrito por outrem. E isso estará na origem das suas desventuras.
Também aqui, seguramente, Alexandra Lencastre não se encontra só. As actrizes, os actores vão encarnando sucessivas personagens, vão assumindo variadíssimos papéis – e essa vida artificial, de fantasia, afasta-os progressivamente da realidade. Sabem viver no plateau, debaixo das câmaras e das luzes dos holofotes, com muita gente a ver, debitando frases que não construíram – mas quando passam do palco para a rua revelam dificuldades. Habituaram-se a viver na ficção.
Vão participando em filmes atrás de filmes, novelas atrás de novelas, constroem e recriam personagens, mas não conseguem construir a sua própria vida. E, por isso, fora dos estúdios sentem-se perdidos, andam aos tombos, picam aqui e ali, não conseguem a estabilidade.
Isso ajuda a perceber os problemas psicológicos que afectam muitas estrelas de Hollywood – que gastam rios de dinheiro no psiquiatra. Marylin Monroe é o caso mais emblemático de uma mulher desejada e bonita por fora mas que não conseguiu a tranquilidade interior. E ainda recentemente se suicidou Robin Williams. As estrelas que todos invejam têm por vezes vidas pessoais assustadoras.
Entretanto, este fenómeno não é exclusivo do cinema e da TV, estendendo-se com algumas nuances a todo o universo do espectáculo. Do mesmo modo que os actores, também os cantores representam uma personagem – um ícone; a diferença é que passam toda a vida a interpretá-la. Só isso, aliás, lhes permite aguentar tournées duríssimas e subir ao palco em circunstâncias por vezes lastimosas. Suportam tudo – porque não são eles, são as figuras que interpretam. Elvis Presley era um destroço humano no final da vida, do qual apenas sobrava a embalagem.
Mas mesmo numa área insuspeitada como o jornalismo haverá casos semelhantes. Sobretudo entre os jornalistas que aparecem muito no ecrã. À sua maneira, eles também constroem personagens, 'bonecos', à margem da vida real. Passam muito tempo no estúdio, que para eles se torna a verdadeira realidade, a realidade que interessa, porque lhes dá o dinheiro e a fama. A vida fora do estúdio torna-se uma treta. Bons profissionais como José Alberto Carvalho, Ana Lourenço ou Clara de Sousa estarão nesta categoria. E o mesmo se poderá dizer de apresentadores como Manuel Luís Goucha, Teresa Guilherme, Jorge Gabriel, Fátima Lopes, etc. Para já não falar de grandes figuras mundiais do talk-show, de Oprah Winfrey a Jay Leno.
E, se calhar, os verdadeiros actores, os verdadeiros cantores, os verdadeiros apresentadores, os verdadeiros jornalistas televisivos serão aqueles que não conseguem ter vidas pessoais, porque se entregam de alma e coração à sua actividade. Que convivem mal com a vida real, e só conseguem encarnar os 'bonecos' que criaram para si próprios.
Quando as coisas são 'a sério', as pessoas como Alexandra Lencastre têm mais dificuldade de lidar com elas. Porque aí já não se trata de interpretar, de representar : trata-se de ser quem são. E aí é que a porca torce o rabo. Porque desabituaram-se de o ser, não conseguem ter uma vida normal, não conseguem formar uma família normal, com as suas rotinas, as suas dificuldades, os seus altos e baixos.
Estas pessoas habituaram-se a viver noutro mundo e não são capazes de descer à Terra. E quando lhes falta esse mundo, a ilusão, os holofotes, as câmaras, os papeis para decorar, caem. É isto que acontece aos actores e actrizes que estão no desemprego, aos apresentadores que passam à reforma, aos jornalistas televisivos que são afastados do pequeno ecrã. Todos me dizem que é muito difícil aguentar o choque. Não só por, com o afastamento, começarem a cair no esquecimento, serem menos reconhecidos na rua, deixarem de ser invejados.
Mas também porque não construíram uma vida própria – e, portanto, nela não existem. Vivendo sempre na ilusão, não construíram nada que lhes permitisse viver uma vida normal quando a ilusão terminasse.