Fazer uma oferenda a uma divindade orixá em Santa Comida, de Miralda, rastejar para uma caverna em The Trajectory of Light in Plato’s Cave, de Mike Kelley, ou observar três barris de petróleo em instável equilíbrio e em rotação em False Movement (Stability and Economic Growth), de Damián Ortega, são algumas das possibilidades oferecidas por ‘Tensão e Liberdade’. Se a arte contemporânea se pode definir como um permanente questionar da sociedade, esta exposição, desde esta sexta-feira noCentro de Arte Moderna (CAM)da Fundação Calouste Gulbenkian, acerta no primeiro prémio e na terminação.
Graças a um protocolo entre as fundações La Caixa e Gulbenkian – e com a participação do Museu d’Art Contemporani de Barcelona –, materializou-se numa mostra a reflexão da directora do CAM, IsabelCarlos, sobre «a história comum dos dois países ibéricos no século XX», fustigados pela guerra civil e colonial e por duas longas ditaduras. «Por outro lado, não só encontramos essas ideias de tensão e liberdade em artistas portugueses e espanhóis, mas também noutros, nomeadamente norte-americanos, por exemplo. As noções de tensão e liberdade atravessam uma série de obras que muitas vezes não têm uma mensagem propriamente política, mas aprofundam o modernismo e desestabilizam os ditames do modernismo», explica a também curadora da exposição.
Mini de Nauman
Há mais de meia centena de obras de 22 autores, mas um deles se destaca: o norte-americano Bruce Nauman, «artista crucial e de referência de toda a arte contemporânea», aqui representado numa «mini individual», porque se juntaram obras das colecções da La Caixa e doMACBA. De Nauman há uma série de desenhos e outra de vídeos dos anos 60 e 70 – aqui é a «tensão entre o seu próprio corpo, ou de amigos próximos, e o espaço», e depois, noutro de 1985, Good Boy Bad Boy, em que as questões do género e da raça saltam à vista: um actor negro e uma actriz branca, cada um num televisor, interpelam o espectador.
Santa Comida, de Miralda, faz uma garrida instalação sobre «como a escravatura fez o trânsito de culturas africanas para a América».Há sete altares, cada um dedicado às principais divindades do candomblé, mas também aos santos católicos – um efeito visual que o espectador dá conta ao movimentar-se.Como no candomblê os deuses recebem oferendas de comida, os visitantes são convidados a fazerem a sua, ao som de um bolero.
A música teve um papel fundamental em Mike Kelley. Numa versão anterior da instalação agora em Lisboa, os Sonic Youth acompanhavam ao vivo Plato’s Cave, Rothko’s Chapel, Lincoln’s Profile. Já não há música: debaixo de uma pintura que indica ao «verme» que a vê para rastejar, há uma entrada que dá para uma ‘caverna’, a qual tem uma cortina com a pintura de uma vagina, lareiras falsas, a impressão do corpo de Kelley ao lado de uma imagem que alude ao teste de Rorschach e lençóis com várias cores, quais fluidos corporais.
Num bloco intimamente ligado à política, surge For Mozambique, escultura de Ângela Ferreira que transmite imagens de um concerto de Bob Dylan por Moçambique, e reproduz cartas entre Jean-Luc Godard e o Estado moçambicano, bem como de selos alusivos à independência. De Ana Hatherly há um conjunto de «montagens lindíssimas» realizadas no pós-25 de Abril, As Ruas de Lisboa, bem como um filme experimental, Revolução, no qual se sobrepõe a recolha de sons de discursos e de comícios e as imagens dos posters e das ruas.
Propaganda, de Nuno Nunes Ferreira, resulta da transformação de materiais partidários que o artista encontrou numa sede abandonada do PCP. De Antoni Muntadas há Carteras sin Ministro, pastas de couro de ministérios sem o correspondente governante (Investigação e Inovação, Desenvolvimento Social e Direitos Humanos e Justiça). E, por fim, as ilustrações que João Abel Manta concebeu para Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires.
X marca o local
‘X de Charrua’ é o nome de outra exposição desde hoje no CAM, e que, como ‘Tensão e Liberdade’, pode ser visitada até 26 de Outubro. Com curadoria de Ana Ruivo e Leonor Nazaré, trata-se de uma antológica do pintor eborense António Charrua (1925-2008), que reúne 220 obras realizadas ao longo de quatro décadas.
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