Rafael Chirbes: ‘Escrever é como um parto’

Conheceu Portugal na segunda metade dos anos 70, quando o país exalava o “perfume da revolução” e Lisboa era um “pólo de atracção”. Mais tarde, como jornalista, fez duas reportagens sobre a capital portuguesa. Diz que conhece pouco da literatura portuguesa, mas é a modéstia a falar mais alto: de Camões a José Luís Peixoto…

Demorou seis anos a escrever 'Na Margem'. Foi o livro que mais tempo lhe tomou?

Sou muito lento, preguiçoso. Quando acabo um livro fico mudo e pouco a pouco vou recuperando a linguagem até que por fim sai um novo romance. Crematório foi um romance que me deixou mudo e muito esgotado, talvez por ser muito demolidor. Crematório pretendia ser um testamento da minha geração e do seu naufrágio, a geração que queria converter Espanha mas que acabou por transformá-la numa lixeira, num pântano. Crematório nasce de um impacto estranho. Vivia numa aldeia de 300 habitantes na Extremadura, perto de Portugal. Da minha janela via 30 quilómetros de azinhal e de repente, por causa da minha irmã, mudei-me para onde vivo agora (Beniarbeig), que é perto da zona onde nasci. Ali havia gruas e urbanizações, máquinas em escavações. Esse impacto de voltar a alguns lugares que haviam sido paradisíacos na infância e ver a sua destruição provocou a escrita. Depois começou a viver-se uma situação estranha, um paradoxo em relação ao que se passava e ao livro anterior, que era sobre a grande borbulha imobiliária. De repente estamos rodeados de languidez, de falta de ânimo, de perspectiva. E claro que isso coincide com o passar do anos e com a sensação de que o trigo já está todo moído. 

'Na Margem' é um retrato desapiedado da sociedade, mas recebeu algumas críticas por ser muito pessimista. No entanto o humor está presente.

O ambiente violento está presente em todo o lado, mas a suavidade da linguagem oculta a luta de classes e a opressão de uns sobre outros. Sim, creio que o livro se pode ler em modo de humor de cima a baixo, convertendo-o em teatral. O que se diz de forma séria torna-se irónico, por exemplo, quando se pergunta o que é mais importante salvar, um tigre de Bengala ou um velho…

Ou quando menciona o relógio de luxo de Felipe González.

Há um toque de ironia em todo o livro. A paródia no último capítulo, 'Onde está o dinheiro? Foi tudo pelo esgoto abaixo, pelos canos das pias e das retretes, pelos buracos de pachachas'. É um humor duro. Quanto ao pessimismo, alguém que me apresente um bom romance optimista. Só se forem os livros de auto-ajuda. Não creio que Os Irmãos Karamazov seja optimista, nem Madame Bovary nem O Primo Basílio. As pessoas não gostam é de literatura, porque as pessoas que gostam sabem que a vida termina na morte, e que a juventude termina na velhice. A vida é como é, tenta-se contá-la e dar-lhe um sentido, que é o que se faz nas sociedades laicas, encontrar o sentido da vida através da arte, que nos dá formas de comportamento e de relações com os outros. 

Defende que não se deve enganar o leitor. O escritor deve ter uma ética?

Só penso em mim quando escrevo. Se tentasse ser mau comigo mesmo escreveria Chirbes contra Chirbes, iria destroçar os meus princípios e destroçaria os de outras pessoas. Jamais me ocorreria alterar uma linha para agradar a um leitor ou a um editor. Escrevo para mim, procurando não me enganar. Um romance é uma frase que começa até que termina sem haver truques, seja do ponto de vista, seja da estrutura. 

Tem prazer ao escrever?

Não, sou demasiado judaico-cristão para isso. É como uma espécie de parto, para mim é doloroso escrever, não é um encantamento, 'que bonito pôr uma palavra após a outra'. É claro que há certos momentos de plenitude, repentistas, 'Ah, isto está tão bom', mas dura como uma vela, apaga-se e volta-se a estar no escuro e sem saber onde se está. 

O seu primeiro romance, 'Mimoun', foi sobre um homem que vai viver para Marrocos, quando Espanha e Portugal entravam no mercado comum.

É sobre a sensação de falsidade com que de repente rompíamos com a pobreza e com a miséria. Marrocos fazia-me recordar Tavernes de Valldigna (Valência) da minha infância, os burros e os cavalos, crianças a carregar caixas de laranjas e a pastorear cabras. E de repente foi tudo fora, Europa, Europa, Europa! Numa época em que os romances só tinham vencedores, pessoas muito cultas e europeias, procurei um perdedor, alguém que vai para Marrocos à procura do paraíso e que acaba por se perder no sexo, no álcool e nas drogas. Na mesma linha aconteceu com La Buena Letra, que saiu em 1992, quando se dá a Expo de Sevilha, os Jogos Olímpicos de Barcelona e Madrid Capital Europeia da Cultura, foi quando começou a especulação imobiliária. Escrevo sobre o que vejo  e acima de tudo tento situar-me neste mundo de mentiras em que os senhores do FMI dizem à viúva da minha rua que recebe 400 euros e que tem de se cortar na pensão. Que linguagem de cortes é esta? É uma luta de classes feroz. São monstros vorazes que não se cansam de nos devorar. Recuperar estes termos da linguagem é uma função da literatura porque a literatura é ideologia. 

Não tem esperança da possibilidade de renovação na política espanhola?

A máquina política tritura tudo. E se há esperança de que haja um governante como Tsipras na Grécia sabemos o que vai acontecer. Dizem que é ridículo falar de internacionalismo proletário mas impuseram-nos o internacionalismo das multinacionais. Que contam com os exércitos, contam com os bancos, contam com o poder da alta finança para deitar abaixo um país. Não há instrumentos para as combatermos. E vão continuar. Quando se diz crise, não é crise, é uma mudança de modelo, é levarem-nos para um estádio anterior à resistência da Internacional Operária.

cesar.avo@sol.pt