António Lobo Antunes destaca, falando de Balada da Praia dos Cães (1982): “Num país de literatura medíocre torna-se um regalo encontrar uma segurança de mão desta força, que não pisca o olho ao leitor, um aparelho de triturar tão implacável, uma obra-prima tão contida, sem uma só expressão inútil, uma mínima voltinha de bailarico”. A abrir O Anjo Ancorado (1958), Mário de Carvalho refere a mestria estilística do autor, “tanto mais vincada e eficaz quanto menos se exibe e, pelo contrário, se assolapa ou dissimula”.
Talvez tenha sido esta equívoca (falsa, mesmo) impressão de simplicidade da prosa de Cardoso Pires o que a empurrou tão rapidamente para o quase esquecimento, pouco mais de uma década passada sobre a morte do escritor (n. 1925, m. 1998). Os três prefácios referidos, a que se junta o de Gonçalo M. Tavares para O Delfim, marcam a reedição de quatro títulos nucleares da obra, um dos principais acontecimentos editoriais deste ano.
Tinha um risinho de demónio patusco, que soltava ao assistir e descrever as andanças canhestras das gentes, mas também um piscar de olhos pequeninos que denunciava o quanto se condoía com elas. José, em conversa e gargalhada, era o melhor cartão de visita de si mesmo. Desaparecido o homem (faria 90 anos em Outubro próximo), devíamos todos (leitores e críticos) ter-lhe acarinhado mais a prosa (lendo-a, comprando-a, oferecendo-a, referindo-a mais) e o seu lugar canónico (bem como o editor de todos os livros, na Moraes e na Dom Quixote, Nelson de Matos).
Quero crer que ainda vamos a tempo. Em Outubro, saem, pela Abysmo, Lisboa, Livro de Bordo e o conto Celeste e Lalinha. Leiam-se os livros de Cardoso Pires, que se bastam para mostrar uma procura teimosa de “conta justa, pincelada sem alarde”, o talento de um dos nossos melhores.
Livros:
Balada da Praia dos Cães
De Profundis
Valsa Lenta
O Anjo Ancorado
O Delfim
José Cardoso Pires
Relógio d'Água