David Grossman, 61 anos, nasceu e cresceu no Estado de Israel, serviu no exército e foi jornalista na rádio nacional, até se demitir, em 1988, por esta não divulgar a declaração de independência do Estado da Palestina. Um ano antes, no ensaio jornalístico The Yellow Wind (originariamente escrito para um jornal), retratara a ocupação israelita e o seu efeito sobre os palestinianos, desmoralizador e pressagiador da primeira intifada.
Profundamente humanista, a defesa da paz por Grossman é hoje tida, por uns, como uma das mais lúcidas tomadas de posição intelectuais no Médio Oriente, por outros, como a expressão ingénua de um yafeh nefesh (“alma bonita”, termo usado nos anos 1980 para caricaturar os pacifistas liberais israelitas). Nos dois romances traduzidos em português – Ver: Amor (1986, sobre o Holocausto) e Até ao Fim da Terra (2008, sobre a caminhada de uma mãe para a Galileia, no rasto do filho mobilizado), Grossman escreve sobre o que é viver sob as ameaças da memória e da guerra, e diz o que as neuroses do trauma e da violência querem calar. Falling Out of Time, um lamento poético escrito em 2014, chegará a Portugal em 2016. A Horse Walks Into a Bar, o romance mais recente, passado num bar de stand up, ainda não tem data definida de edição por cá.
André Gide disse que “não se faz literatura com bons sentimentos”. Quer comentar?
O escritor tem de sentir tudo, toda a gama de sentimentos: do amor à raiva, ao ódio ou à compaixão. De qualquer forma, costumo ser muito cauteloso quanto a essas grandes frases declarativas. Afinal de contas, estamos a falar de seres humanos, e os seres humanos são tão ricos, tão contraditórios, que escapam a qualquer regra de aproximação por parte do escritor.
A maioria da sua ficção é sobre a essência da perda…
…ou sobre como ser pai, ou irmão, ou amante, ou uma pessoa ciumenta, ou sobre tantas outras coisas. Enquanto conseguir escrever, tentarei sempre compreender este estranho animal: o ser humano. Até hoje, não o compreendi.
No seu caso, o apelo dos grandes temas universais é inseparável da necessidade de exprimir uma herança e uma condição particulares.
Cada um de nós é o produto de uma religião, uma cultura, uma nacionalidade. O mais interessante é precisamente o ponto de contacto entre esta condição geral e a individualidade. Sim, sou um escritor israelita e isso tem muitos significados e implicações. Vivo num país mergulhado em situações de guerra e de violência há mais de um século. Quando escrevo, tento compreender o que é ser-se humano numa situação desumana como esta.
Ou o que significa ser-se normal numa situação anormal…
Totalmente insana!
E sem solução?
Tenho uma solução, embora ela não seja aceite por muitos: criar um Estado de Israel lado a lado com o Estado da Palestina. Abandonar os territórios ocupados. Desmantelar todos os dispositivos que nos separam. Não consigo imaginar uma solução melhor.
Ceder, de parte a parte?
Sim. Parar a ocupação e o terror e começar a aprender a viver em paz. Desistirmos de cimentar a nossa identidade apenas na violência e na desconfiança. Descobrirmos se conseguimos viver sem guerra. Por vezes, pergunto-me se não estaremos, afinal, viciados na guerra e se seremos algum dia capazes de abdicar das ideologias que fabricamos para a justificar. É um processo, ao mesmo tempo, masoquista e sádico. Autofágico. Habituámo-nos de tal forma a este estado das coisas que deixámos de ver a sua anormalidade. A guerra no Médio Oriente é vista quase como um decreto divino, algo que não conseguimos contornar ou controlar, ao qual nos sujeitamos, e é só. Acho insultuoso pensar-se que esta é a única realidade possível.
Faz tempo que no Médio Oriente a afirmação de cada um é feita não em si ou para si, mas contra o outro.
Não quero articular o meu ser a partir dessa terminologia. Existem tantas opções de relacionamento entre nós, israelitas e palestinianos. Mas a maioria das pessoas, de ambos os lados, nem sequer as equaciona; estão de tal modo imersas em violência que cristalizaram dentro dela. Agem contra os seus próprios interesses, desde que atinjam o inimigo, num círculo vicioso incessante. Quando falo de paz, não me refiro apenas à resolução de problemas de territórios, fronteiras, lugares sagrados, dispositivos de guerra ou de refugiados. Falo da criação de uma nova forma de estar na vida. Isso é o mais difícil de atingir: usar a criatividade contra a destruição