O Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, apresentou as temporadas Lírica e Sinfónica 2015/16, mas continua sem director artístico depois da saída conturbada de Paolo Pinamonti, em Dezembro. Como se criou então esta programação?
Programar é um acto contínuo, é a construção de uma visão para uma instituição. Nesse sentido, no papel de maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), vou criando as oportunidades para fazer as coisas que imagino adequadas para esta orquestra. Mas naturalmente a temporada não foi feita só por mim. Tivemos um programador convidado, o Patrick Dickie, que nos ajudou a estruturar uma temporada que acredito ser muito forte, com variedade, profundidade e inovação.
Ainda assim, um programador convidado não resolve o facto de um teatro nacional estar sem director.
Este vazio é uma situação que me preocupa muito. A saída de Pinamonti criou uma instabilidade no teatro e é urgente nomear um director para que essa ordem seja restabelecida. O São Carlos precisa de um director artístico que seja responsável pela identidade e pela visão artística contínua do teatro.
Questiona a tutela sobre essa questão?
A informação que tenho é que será aberto um concurso para um director o mais breve possível. É evidente que tenho que ter uma relação com o agente que me nomeou [o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier], temos reuniões, mas a minha função é artística e é assim que quero que continue.
Não se imagina na direcção do teatro?
Sou maestrina principal da OSP e é muito claro qual é o meu papel. Tenho obrigações na programação, mas não tenho vocação, nem a aspiração, para dirigir um teatro. Não quero fazer mais nada para lá do meu forte que é dirigir orquestras.
O que destaca então na nova temporada?
Da temporada Lírica destaco duas produções novas – O Diálogo das Carmelitas, produção de Luís Miguel Cintra, e a Iphigénie en Tauride, de James Darah. Destaco também o facto de o São Carlos voltar ao Centro Cultural de Belém com ópera (Madama Butterfly e Nabuco), e a presença de grandes artistas como a Elisabete Matos, que vai voltar para mais um concerto, uma residência artística e uma masterclass. Na temporada Sinfónica teremos os nossos concertos uma vez por mês no CCB, com grandes páginas sinfónicas, como Mahler, Bruckner e Brahms, bem como compositores portugueses como Joly Braga Santos ou Luís Tinoco. Realço ainda o facto de a OSP sair da sua casa para ir tocar à Gulbenkian ou à Casa da Música. Esta itinerância é uma característica importante para uma orquestra que se diz portuguesa.
Além de ser maestrina titular da OSP, também assume a direcção musical da Berkeley Symphony, é maestrina convidada da Orquestra Gulbenkian e dirige o Estágio Gulbenkian para Orquestra, com quem passou a última semana em concertos pelo país. Nunca se sente estrangulada pelo excesso de obrigações que tem?
Claro que há momentos em que penso que tenho de desacelerar. Às vezes, a saudade que sinto de casa é tanta que há muita hesitação sobre se devo continuar assim. É fundamental manter as minhas relações vivas e as minhas rotinas familiares. Isso está em primeiro lugar. Aquilo que a vida me tem ensinado é a criar uma hierarquia cada vez mais equilibrada. Não desistir, mas reorganizar-me, porque o que faço é um privilégio enorme. Foram-me dadas tantas coisas de graça, por Deus e pela comunidade musical portuguesa, que tenho uma responsabilidade perante estas pessoas.
Essa responsabilidade é um peso?
É, mas no melhor dos sentidos. Seria tão bom que todos os artistas portugueses sentissem este apoio, sentissem este estímulo constante das instituições portuguesas. Creio que a melhor forma de retribuir é encarar o meu trabalho com a máxima seriedade e servir da melhor forma as instituições que me chamam.
Milhares de mulheres no mundo inteiro enfrentam esse dilema. É possível ser altamente profissional colocando a família em primeiro lugar?
Quando se tem um marido tão disponível, que me quer ver tão bem, como o meu, é sim, é possível. Mas isso não torna tudo mais fácil. Aliás, é muito mais difícil agora ausentar-me. Tenho um marido maravilhoso, sempre que pode vai ter comigo nos fins-de-semana em que estou a trabalhar pela Europa, marca férias em função das minhas solicitações profissionais. Só com esta disponibilidade é que conseguimos. E mesmo assim, para mim é cada vez mais difícil porque sou uma pessoa muito afectiva, que precisa do abraço, do toque diário. Não me consigo adaptar a este lado solitário da vida do maestro. Nunca. Até porque não são só as viagens. Pode parecer um paradoxo para quem nos vê com a orquestra cheia de músicos, mas a maior parte do nosso tempo é com a partitura em casa, numa secretária ou ao piano, sozinhos a descobri-la.
A profissão ficou muitas vezes à frente da vida pessoal?
Tantas…
Há muito arrependimento?
Nunca me arrependi de ter aceite um projecto, mas já me arrependi da forma como organizei o meu tempo, de ficar fora sem haver pausas para vir a casa.
O que perdeu de mais significativo?
Muita coisa… Não estive presente no casamento do meu irmão mais velho.
Ele perdoou-a?
Sim, ele teve uma atitude completamente altruísta. Disse-me logo ‘quem está a sofrer és tu’. E realmente era eu que estava sozinha em Los Angeles. Mas é um momento que não volta, nunca poderei ter estado presente naquele dia e a vida ensinou-me que isso não pode voltar a acontecer. Tinha 20 e poucos anos e tinha acabado de ser nomeada maestrina assistente da Orquestra Filarmónica de Los Angeles, uma das melhores do mundo. Era o meu primeiro concerto oficial com orquestra e senti que tinha de cumprir o meu dever. Claro que agora, em retrospectiva, penso ‘como é possível não teres dito que não, mesmo que isso implicasse uma acção disciplinar’. Esse momento foi o mais grave, mas houve muitos outros, muitas festas de aniversário, funerais… É muito duro alguém da nossa família morrer e não estarmos presentes. Há dois anos, consegui vir a Portugal despedir-me da minha avó paterna, mas quando ela morreu não estava cá.
Esses concertos correm bem, sabendo que há coisas importantes a acontecer em casa?
Felizmente correm, mesmo contrariando as prioridades.
Cresceu numa casa com nove filhos. A solidão que diz viver agora também é mais difícil por isso?
A nossa casa era mais silenciosa do que se possa imaginar. Às refeições podia ser caótico, com três ou quatro conversas diferentes a decorrer, mas em geral havia muita harmonia. Só tenho boas memórias da minha infância e adolescência.
Há uns tempos li numa revista os seus pais (a ex-deputada Maria do Rosário e o ex-ministro da Educação Roberto Carneiro) a comentarem que, por serem nove, às vezes esqueciam-se de alguns filhos quando os iam buscar à escola…
Como era pequena não me lembro disso, mas acho que nunca fui esquecida. Se calhar até fui [risos]. Ter tantos irmãos é uma dádiva enorme e quando uma pessoa faz parte de uma família numerosa sabe que a atenção tem de ser repartida. Os meus pais sempre tiveram o cuidado de dar atenção a cada um. Desde cedo levavam-nos a concertos, mas só iam dois ou três de cada vez. Também faziam questão de almoçar uma vez por mês com cada um dos filhos, para criarem uma relação.
São seis irmãs, havia muitas zangas?
Não, as minhas irmãs são as minhas melhores amigas. Sempre nos demos muito bem.
Nem no que diz respeito, por exemplo, a trocas de roupa, um tema tão sensível para uma adolescente?
Ah, sim. Aquelas coisas típicas de irmãs, zangarmo-nos porque uma levou um casaco nosso sem pedir. Mas hoje é maravilhoso, partilhamos muito mais. Como temos todas mais ou menos a mesma altura e o mesmo número de sapatos, vamos frequentemente a casa umas das outras buscar roupa, sapatos, acessórios.
Tem 38 anos, casou-se há quatro, e ainda não é mãe. Por vir de uma família numerosa a pressão é maior?
A pressão exterior não tem qualquer efeito sobre mim. Os caminhos de cada casal são construídos pelos próprios. Não escondo que é um desejo e por eu e o meu marido virmos de famílias tão felizes gostávamos de continuar esse amor através dos nossos filhos. Espero ter a sorte de a natureza permitir que seja mãe.
Começou a estudar música com seis anos. Era obrigatório para todos lá em casa?
Sim. Os meus pais consideravam essencial que os filhos tivessem a formação de música de 12 anos, o curso do conservatório. Para nós nunca foi possível sequer desistir ao longo desses anos e era tão importante ter boas notas a português, matemática ou geografia, como era a violino, orquestra ou coro. Tenho muita sorte de pertencer a esta família e seria desejável que todas as crianças deste país tivessem acesso à música como eu e os meus irmãos tivemos.
Mas estudar música em Portugal continua a ser para uma elite…
Continua a ser para alguns, sobretudo para quem quer, como eu fiz, estudar música dos seis aos 18 anos. A música é essencial na formação humana e isto não é a minha opinião. Existem muitos estudos que corroboram a teoria de que a música cria competências importantíssimas no ser humano ao nível da disciplina, da memória, da imaginação. E estudar música não é só para quem quer fazer disto profissão. Os meus irmãos todos estudaram e só eu é que trabalho profissionalmente em música.
Durante a formação e agora, na vida adulta, ouve música para lá da erudita?
Sim, sou muito influenciada pelo meu marido. Ele trouxe os Rolling Stones à minha vida, coisa que os meus pais nunca me deixaram ouvir em jovem. Costumo dizer que ele é o fã número um da banda, inclusive, as mesas do nosso casamento eram nomes de canções dos Rolling Stones. Ele também me introduziu a um grupo que ainda gosto mais que são os Led Zeppelin. Tinham uma imaginação musical incrível, uma capacidade de improvisação maravilhosa.
Sempre teve uma relação saudável com a música? Pergunto isto por causa do filme que este ano esteve nomeado para os Oscares, Whiplash – Nos Limites, que mostra a relação obsessiva de aluno e professor com a música.
A disciplina, a repetição e a dedicação necessárias são muito grandes, sobretudo quando somos jovens. É fundamental ter sempre presente o objectivo de se atingir a excelência e a perfeição. Revi-me bastante nesse aspecto no aluno do filme. Já no maestro não é nada assim. Não acredito que a agressividade e a humilhação sejam o caminho para inspirar alguém a chegar à excelência. Aquele autoritarismo seria inadmissível em qualquer orquestra, teria sido despedido no primeiro ensaio que vemos no filme. Aquilo que fazemos tem a ver com beleza e se queremos inspirar beleza aos outros a liderança tem de ser espiritual.
Até onde pode ir então o maestro para impor a sua liderança?
Ser maestro tem muito pouco de autoritário e muito mais de inspiração. É uma liderança mais espiritual e só através da música, não tanto das minhas características pessoais. Os meus pais sempre disseram que, dos nove, eu era a mais autoritária. Mas a vida e os meus mentores foram-me ensinando que autoritarismo por si só não combina com o serviço que temos de prestar à música.
É fácil controlar o ego a dirigir?
É muito importante que o maestro seja uma pessoa confiante, que conheça bem a partitura e a saiba transmitir. Mas a minha opinião não é mais importante do que a de um músico. Este equilíbrio entre confiança e humildade tem de ser muito bem gerido. Temos de ter muita confiança naquilo que fazemos, mas também temos que saber ouvir o que os músicos estão a tocar porque podem ter uma ideia melhor do que a nossa. E muitas vezes têm mesmo.
Sempre foi muito confiante em si própria?
Tenho as minhas inseguranças, é evidente, mas sempre fui muito extrovertida a expressar-me. Nunca tenho assim grandes receios. A minha mãe sempre me disse ‘tens muita lata’. E acho que é verdade, até hoje. Eu, pelo contrário, tenho é de controlar o meu temperamento muito expressivo. Desde miúda que sempre confiei que as coisas iam correr bem de alguma maneira. Podia não depender de mim, um concerto não depende só de mim, mas sou sempre muito optimista.
Qual deve ser a melhor qualidade de um maestro?
Paciência, primeiro para lidar com uma partitura. É um trabalho muito moroso e é difícil chegar a um consenso dentro de nós. Fui aprendendo a ganhar essa paciência que antes não tinha. Uma partitura é como um instrumento, tem de se passar horas, dias, anos com ela. Também é fundamental ter paciência na gestão da carreira, uma vez que os maestros reconhecem-se aos 60, 70 anos. Ainda tenho muito para andar. É preciso dar saltos ponderados porque isto é uma maratona. Muito mais do que saltos exponenciais, a consistência é o mais importante.
Decidiu ser maestrina com nove anos de idade. Que maturidade foi essa para perceber tão cedo qual era o seu talento?
Só percebi o que significa dirigir muito mais tarde. Aquilo que provavelmente sentia é que havia uma beleza coreográfica aliada ao som. Dançava ballet e há de ter havido aí alguma associação. Mas é verdade que desde cedo sempre gostei de me colocar em lugares de destaque. Na escola oferecia-me sempre para ser a delegada de turma, quando era necessário alguém fazer um discurso, dar um concerto, lá estava eu. Tinha sempre essa disponibilidade.
Disse que um maestro é um líder espiritual. Chegou a essa definição por causa da sua fé?
Acredito que contribuiu. A religião é uma parte fundamental da minha vida e a minha relação com Deus e com a Igreja ajuda-me em muitos aspectos. Expressar a minha espiritualidade em comunidade, ter rituais, continuidade, repetição ajuda-me no meu trabalho porque a música é a arte de exprimir sentimentos e despertar sensações, criando beleza através dos sons. E liderança espiritual sem ser no sentido religioso também tem a ver com esse sentimento em comunidade, de construir qualquer coisa com o outro. Como artista tenho de partilhar beleza com os outros e poder fazer isso é um privilégio ímpar. Fazer música é um momento belo, de oração, de ligação com qualquer coisa fora do que é o terreno. A música tem essa capacidade, de nos levar imediatamente para um plano espiritual.
Também atinge esse estado como espectadora?
Sim, sem dúvida. Guardo alguns concertos como momentos marcantes na minha vida. Um deles foi no Coliseu dos Recreios, a ouvir a ‘Segunda de Mahler’, com o maestro Claudio Abbado e a Orquestra Filarmónica de Berlim. Houve outro concerto que não esqueço, em Nova Iorque, em 2002, em que fiquei sentada ao lado da Cecilia Bartoli e só pensava ‘o que é que ela estará a pensar da soprano?’. Na primeira parte foi tocada uma peça do John Adams, o compositor vivo da minha predilecção, escrita por ocasião do primeiro aniversário do 11 de Setembro. Foi muito bonito.
Falou com a Cecilia Bartoli?
Não! Não nos conhecíamos. Tinha 20 e poucos anos…
Afinal a menina extrovertida e ‘cheia de lata’ também tem inibições…
Não tive coragem de a abordar. Não saberia o que lhe dizer.
Há cinco anos conheceu o Papa Bento XVI quando ele veio a Lisboa. Também ficou nervosa?
Emocionei-me muito, até porque o Papa Bento disse-me coisas maravilhosas, como ‘os artistas têm a obrigação de tornar todos os dias um lugar de beleza’.
Em comparação, que opinião tem do Papa Francisco? Revê-se mais em quem?
Para mim, o Papa Bento tinha uma espiritualidade relativamente à cultura que era uma inspiração. Aquilo que me tem comovido tanto no Papa Francisco é a forma como ele se põe sempre no lugar do mais fraco, até em temas fracturantes para a Igreja. Um dos grandes ensinamentos que o Papa Francisco nos tem dado é que, em primeiro lugar, devemos pôr-nos no lugar do discriminado e depois perguntarmo-nos: ‘O que Cristo faria perante essa situação?’. É um grande exemplo.
A sua fé começou por ser algo que lhe foi incutido pela sua família em criança. Nunca a questionou?
Não. Sinto a minha vida religiosa como um caminho para a felicidade e para a santidade, para tentar ser sempre melhor pessoa. É evidente que aos cinco anos, quando ia à missa com os meus pais, não tinha essa noção.
E na adolescência, altura dada a rebeldias?
Nunca fui rebelde. E, pelo contrário, na adolescência a minha vida em termos de comunidade religiosa era muito mais activa. Fazia parte de agrupamentos de jovens, estava sempre envolvida em mil e uma coisas. Hoje só consigo ir à missa aos domingos, mas tento ir sempre mesmo quando estou fora de Portugal.
Nunca desobedecia aos seus pais?
Com certeza que fui desobediente em alguns momentos, mas nunca dei grandes problemas. Nunca fugi de casa a meio da noite, cumpria os horários que me pediam, não ia a discotecas… Fui sempre muito certinha.
Mas divertia-se?
Divertia-me muito! Tinha muitos amigos e fazíamos muitas brincadeiras, só não era muito de sair. Era muito ligada aos estudos, muito responsável, e gostava mesmo de estudar. Tinha 5 a tudo, excepto a Educação Física. Os professores passavam-me por caridade. Lembro-me que uma vez tive 1 a Ginástica. Era tão, tão fraca e não me esforçava nada. Esquecia-me, entre aspas, do equipamento, era muito preguiçosa. Hoje tenho a sorte de ter uma vida profissional que me dá uma condição física boa, senão seria um problema. Normalmente os maestros não têm problemas cardíacos porque o endurance faz parte da nossa vida.
Ser mulher num mundo predominantemente de homens ainda é uma questão?
Nunca me senti discriminada, porque no nosso país isso nunca foi uma questão.
Mas Portugal tem fama de ser um país machista…
Não na direcção de orquestra. Pelo contrário, sempre fui muito estimulada. Por nunca ter sido uma questão para mim, a primeira vez que alguém me falou nesse assunto eu já estava tão dentro da minha vocação que foi irrelevante.
Quem foi?
Foi um colega num estágio de direcção de orquestra que me disse que achava que as mulheres só deveriam dirigir um determinado tipo de repertório, Händel, música barroca, o período do classicismo. Para ele, uma mulher nunca deveria dirigir uma sinfonia de Mahler, Bruckner ou uma ópera de Wagner.
Ficou ofendida?
Disse-lhe: ‘só espero que a minha vida e a de outras mulheres provem que isso não é verdade’ e arrumei o assunto aí.