É presidente do Tribunal de Contas (TdC) há dez anos. Que balanço faz?
O TdC nestes dez anos foi significativamente reforçado. Na linha daquilo que desde o início do mandato do Professor Sousa Franco foi considerado indispensável para o tornar uma instituição moderna e eficiente. E não sou eu que o digo, são várias entidades independentes – o TdC contribuiu para o reforço da soberania política e económica de Portugal.
Há uma desesperança no país e uma suspeição que assombra as instituições. Porém, o TdC e o seu presidente passam incólumes por dois governos de cores diferentes. Qual é o seu segredo?
Não há segredo, é a instituição. Sou um institucionalista, como sabem. E por isso a colegialidade é para mim uma regra fundamental. O Tribunal tem-se afirmado graças ao seu prestígio. E graças a uma característica importante: nós não vamos à procura de esqueletos nos armários. As auditorias se não forem aprovadas por unanimidade, não são aprovadas. Dou-lhe o exemplo das recentes auditorias da saúde, em que as conclusões foram aceites por todos. Queremos garantir que haja uma melhor resposta relativamente ao funcionamento da administração e à boa utilização dos dinheiros públicos.
O TdC já foi visto em tempos como uma força de bloqueio. Esta sua resposta mostra que já não é?
Nunca foi. O que se passa é o seguinte: o conjunto de competências do TdC em Portugal revelou-se de uma extraordinária importância. Nos memorandos de entendimento dos programas da troika, a única instituição independente que tinha um papel relativamente aos vários programas foi o TdC português. E o TdC português viu, no final, o reconhecimento do seu papel pelo FMI, pelo BCE e pela CE – relativamente às PPP, por exemplo.
A sua actuação está entre o rigor das contas e a utopia da criação – também é presidente do Centro Nacional de Cultura. Pende mais para o pessimismo das contas ou para o optimismo?
O optimismo é tão mau conselheiro quanto o pessimismo. Por isso, Jean Monnet dizia que preferia ser determinado. Esses dois mundos em que me movo não são tão inconciliáveis assim. Mas dou-lhe o exemplo que ainda há uns dias partilhava com o comissário Carlos Moedas: a filha de Lord Byron, Ada Lovelace, viveu sempre com a mãe, que lhe disse que ela devia resistir à pulsão poética e criativa e sobretudo devia cultivar a dimensão científica. Tornou-se uma matemática, mas cultivou sempre grande admiração pela poesia do pai. Não há dois mundos. E hoje o grande desafio que se põe – a Portugal, à Europa e ao mundo – é o da inovação. Não aumentaremos o crescimento potencial se não houver uma forte componente de inovação e criatividade.
E lidarmos com a falha, com que os portugueses não lidam bem.
Com certeza! Vilfredo Pareto, no início do século XX, dizia que existiam ciclos de criação e ciclos de especulação. E o problema põe-se nas economias quando os ciclos de especulação são mais longos do que os de criação. Conversando com uma amiga minha, poeta, dizia ‘mas a especulação é fundamental’. Eu dizia, ‘cuidado, não estamos a falar da especulação de ideias, estamos a falar da especulação financeira’. Estamos a falar da corrupção, estamos a falar de outras coisas que não têm a ver com a capacidade inovadora.
Falou de determinação. É absurda a ideia de num momento de curto prazo existir uma vaga que o faça determinar-se por uma candidatura a Belém?
Não é um problema que se me ponha. Sou titular de um órgão de soberania, não violo o princípio da separação de poderes.
Quando se discute se alguém pode ser Presidente da República sem experiência política essa é uma discussão que lhe interessa?
A experiência política é fundamental.
Ainda relacionado com a função presidencial: o PR fez um apelo a entendimentos entre os partidos. Fê-lo no momento certo?
Estaria a fazer comentário político se dissesse alguma coisa.
Acha importante cada vez mais, numa lógica também europeia, que os partidos de poder possam criar condições para entendimentos?
Essa é uma questão relevante e sobre ela me pronuncio sem qualquer tipo de resistência. Em primeiro lugar, a democracia é o lugar das diferenças e dos compromissos. É indispensável que haja compromissos relativamente ao que é institucional e de longo prazo. Por exemplo, a política educativa ou o Serviço Nacional de Saúde. São elementos que não podem estar no ciclo eleitoral. É indispensável percebermos, por exemplo, que uma medida de política educativa tem efeito a 23 anos, pelo menos
Esse papel de aglutinador de vontades pode ser desempenhado pelo Presidente da República?
Pelas instituições. O PR actuará com a AR e o Governo no sentido de criar um conjunto de factores que leve a sociedade e a economia a poderem desenvolver-se.
A crise europeia abanou a crença de que os partidos do centro tenham solução para ultrapassar esta crise. Ainda podemos confiar nos principais partidos políticos para nos oferecerem uma solução para o país?
Os partidos políticos têm de ser capazes de responder às solicitações da sociedade e dos cidadãos. Não há democracia sem partidos políticos e sem pluralismo, mas os partidos políticos têm de estar atentos aos movimentos da sociedade. E é essa a questão perante a qual nos encontramos
Há um dado novo para as novas gerações, a percepção de que uma solução de política só pode ser encontrada nos extremos.
Há dias um grande amigo meu, o João Salgueiro, um pessimista militante e uma das mais inteligentes pessoas que conheço, confessou-me que pela primeira vez estava optimista. Sabem porquê? Porque chegámos a um ponto em que temos de sobreviver. Recordo uma pequena história: Jean Monnet, já muito idoso, acompanhado de um conhaque, na sua quinta, um belo dia disse ‘aqui deveria plantar-se um carvalho’, e o fazendeiro respondeu-lhe que ele já não ia ver o carvalho porque pela lógica normal das leis da natureza, o carvalho demora muito tempo a crescer. Monnet disse ao fazendeiro que o carvalho deveria ser plantado antes do almoço.
Parecem longe os tempos idealistas dos europeístas como Monnet. Dos que defendiam uma Europa cada vez mais alargada…
Hoje não estamos em tempo de alargamentos, hoje estamos em tempo fundamentalmente de consolidação.
Pegando ainda um bocadinho nesta ideia dos consensos políticos, dos compromissos, temos umas eleições legislativas com mais partidos…
Para o debate é sempre bom termos mais ideias, mas para a governação política tem inconvenientes relativamente à governabilidade. Eu não sou daqueles que defende que não há direita e esquerda. Há direita e esquerda. E é indispensável que a direita e a esquerda se afirmem e se desenvolvam a partir dos seus próprios valores e a partir das suas próprias ideias.
De uma maneira ou de outra encontra no seu caminho Sá Carneiro, Mário Soares e depois António Guterres
E até o general Eanes.
Partilha da preocupação de que os principais actores políticos não têm a dimensão dos do passado?
Não, não partilho. Uma das minhas preocupações fundamentais é conhecer a História. E a História diz-nos que os momentos fazem as pessoas e as respostas. Compreender a História significa tirar as suas lições, a História não se repete. Esse é que é o grande problema. Uma sociedade como a portuguesa tem atrás de si nove séculos de História. Herculano dizia poderia haver mais razões para não existirmos do que para existirmos, no entanto existimos porque é o resultado da nossa determinação.
Então tem uma leitura mística, uma leitura divina?
Não. A minha leitura é a de Herculano, a leitura da determinação, insiro-me muito mais nessa ideia, escrevi um livro sobre isso. Já repararam que se fossemos ricos não tínhamos ido para os Descobrimentos? Quando temos sucesso, adormecemos, é uma característica nossa.
A sua relação com o primeiro-ministro é tão boa como ele próprio afirma?
Só posso confirmar.
Surpreendeu-o?
Não sou comentador político. Direi apenas que houve uma boa cooperação institucional.
A crise foi uma oportunidade para revelar o melhor dos políticos e das instituições?
A resposta positiva veio sobretudo da sociedade portuguesa.
Conhecendo bem Passos Coelho e António Costa, os portugueses podem estar tranquilos em relação ao próximo primeiro-ministro?
Não vou fazer comentários, nem vou distingui-los, vou apenas dizer que são naturalmente referências fundamentais…
O ser humano ainda o consegue surpreender?
Sendo um cristão, e aceitando a imperfeição, não me surpreendeu.
Nem na dimensão? Aparentemente corrupção sempre houve…
Sempre que tivermos mais democracia, tivemos menos corrupção. A transparência, a verdade e a justiça são inimigas da corrupção. A prevenção da corrupção começa nos cidadãos, esse aspecto é importante. E apenas 1% dos portugueses – ou seja, cerca de um terço ou um quarto da média europeia – diz-se capaz ou envolvida em corrupção. Significa que os cidadãos ainda não estão conscientes de que todos somos vulneráveis à corrupção porque esta começa no favor, por um favor que às vezes é ditado por uma amizade, uma razão familiar, por um conhecimento.
E ao nível dos poderes?
As pessoas não devem manter-se por muito tempo em determinados lugares e o conflito de interesses tem de estar permanentemente presente para ser evitado. Para combater a corrupção é preciso começar pelo cidadão, pela tomada de consciência do cidadão. A importância das nossas acções começa pelas escolas. Não quer dizer que a mentira e a batota não existam no dia-a-dia, mas nós não queremos viver numa sociedade em que esses elementos sejam regra, eles devem ser excepção. Não há nada pior relativamente à corrupção do que o discurso determinista, que nos leva automaticamente à ideia de fatalidade, a de que há sempre corrupção e que os extremos se tocam.
E quanto ao enriquecimento ilícito?
Disse no Parlamento que se estava a perder tempo. Temos de ter leis simples, claras e poucas. O enriquecimento ilegítimo pode ser compatível com a Constituição desde que se reporte aos titulares de casos políticos ou públicos e que sejam tratados como fiéis depositários de recursos públicos.
Tem uma simpatia especial pelo Papa Francisco?
Tenho. Tenho uma simpatia especial por este Papa, que vem da América Latina. É alguém que põe as questões muito próximas das pessoas e isso é particularmente importante. Neste momento não tenho o gosto, ainda, de o conhecer pessoalmente, mas ouvi o testemunho de uma grande amiga que nos deixou há pouco, a Dra. Maria Barroso, que me descreveu exactamente a sua conversa com ele. Confirmou-me que tenho razões para manter a admiração que tenho por Francisco.
Com quem é que lhe apetecia jantar para discutir ideias políticas?
Com o Presidente Obama.
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