Aparentemente, os dois jornais referiam-se a estudos diferentes. Puro engano: reportavam-se exactamente ao mesmo trabalho, feito pela revista Exame. Como explicar então esta discrepância?
Folheando o Correio da Manhã, percebia-se que o ganho dos 400 milhões se reportava aos 25 portugueses mais ricos – enquanto o Diário de Notícias se referia apenas (como constava do título) aos dez primeiros da lista.
Este exemplo singelo mostra como se podem usar os números. Há quase sempre maneira de os apresentar de acordo com as nossas intenções e objectivos.
A manchete do Correio da Manhã, como jornal tablóide e populista que assume ser, procurava explorar um sentimento que é muito característico dos portugueses: a inveja. Considerando o período de austeridade que o país atravessou, a mensagem subliminar que o título encerrava era: “Vejam lá as injustiças. Enquanto a maioria dos portugueses sofre, os ricos ganham 400 milhões!”. E assim se sugeria que houve dois pesos e duas medidas na distribuição dos sacrifícios: mão pesada para os pobres, mão leve para os ricos.
Já o título do Diário de Notícias, que se assume como um jornal de referência, apontava exactamente em sentido contrário. Ou seja: a crise chegou a todos – pobres e ricos – e ninguém foi poupado.
Entretanto, fazendo as contas, chega-se à conclusão de que os mais penalizados pela crise foram os mais ricos dos ricos. Enquanto os 25 primeiros do ranking ganharam em média 16 milhões de euros em relação ao ano anterior, os 10 primeiros perderam em média 100 milhões.
Como se vê, há números para todos os gostos. Mas a coisa fica ainda mais complicada se se disser que toda aquela riqueza é ‘virtual’.
Um leitor incauto ou menos versado nestes temas poderia pensar ao ler as notícias que aqueles milhões correspondiam a dinheiro depositado nos bancos, porventura em bancos estrangeiros, ou mesmo a barras de ouro – imaginando os ricos, quais Tios Patinhas, a contarem regularmente a fortuna. Mas não é assim: as fortunas anunciadas dizem respeito em boa parte a acções – que são voláteis como o fumo.
Se, por exemplo, eu for grande accionista de um banco, e se as acções desse banco caírem a pique de um dia para o outro, a minha fortuna sofrerá instantaneamente um rombo enorme. A avaliação feita num dia pode já não valer nada no dia seguinte. Veja-se o que aconteceu aos accionistas do BCP, do BPN, do BPP ou do BES nos últimos anos… Alguns perderam a maior parte dos seus bens.
A inveja, que os tabloides de todo o mundo gostam compreensivelmente de explorar, é um sentimento horrível. Horrível em si próprio, mas sobretudo horrível para os que sofrem dele – porque, na ânsia de cobiçarem o que é dos outros, acabam por nem sequer apreciar aquilo que têm. Os invejosos não dão valor ao que é seu – só valorizam o alheio. Tornam-se uns infelizes, passando o tempo a olhar para o lado em lugar de usufruírem daquilo que lhes pertence.
Dir-se-á que há gente que tem tão pouco que não lhe resta outro remédio senão invejar o que é dos outros. É verdade. Mas asseguro que já vi pessoas com muito dinheiro, com uma boa vida, que não conseguem libertar-se desse sentimento nefasto.
Ouve dizer-se com frequência que a inveja é “muito portuguesa”. Que os portugueses são uns incorrigíveis invejosos. Não comungo por princípio destas generalizações, mas um dia ocorreu-me uma possível explicação para isso. Conversando à mesa, há uns bons anos, com o banqueiro António Horta-Osório, que na altura estava no Grupo Santander, adiantei uma justificação para a inveja nacional: como o país é muito pequenino e não pode satisfazer todas as ambições pessoais, passamos a vida a invejar-nos uns aos outros.
Quando alguém é nomeado para um lugar qualquer, lá vêm inevitavelmente umas vozes ressentidas criticar a escolha – porque acham que os escolhidos deveriam ser eles e não os outros.
Eu senti isso quando, muito novo, aos 34 anos, fui convidado para subdirector do semanário Expresso, que na época já se prefigurava como o maior jornal português. Percebi logo que havia gente a pensar: porquê ele e não eu?
A direcção do Expresso era um lugar de influência social e política e existiam muitos pretendentes ao cargo. Ainda por cima, seis meses depois de tomar posse como subdirector, subi a director. A frustração de alguns subiu de tom. Mas ainda poderiam pensar que seria coisa passageira, que mais mês menos mês eu sairia para dar lugar a outro. Só que fui ficando, fui ficando – e acabei por lá estar 23 longos anos! Involuntariamente, ganhei muitos inimigos por essa razão.
Curiosamente, de todos os directores possíveis, eu fui seguramente aquele que menos desejou o lugar – e talvez por isso tenha lá estado tanto tempo. Francisco Pinto Balsemão é testemunha disso. Quando o meu antecessor, Augusto de Carvalho, se demitiu, apresentei a Balsemão várias sugestões de nomes para o substituir, todas recusadas por ele. Cheguei a escrever um texto onde dizia que nunca seria director do Expresso. Mas Balsemão leu-o antes de seguir para a tipografia e pediu-me para retirar essa frase. Aceitei, mas pedi-lhe para ter em conta a minha vontade.
Voltando a Horta-Osório e à minha explicação da inveja como característica nacional, acho que ele a tomou como boa. Mas eu próprio tenho hoje dúvidas sobre isso. E tendo a pensar que a inveja é tão velha, pelo menos, como Cristo.
Atente-se no que diz o 9.º Mandamento: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, nem desejarás a sua mulher, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu burro, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo” (Ex 20,17).
A cobiça, a inveja, vêm provavelmente do fim dos tempos, desde que o homem é homem.
E tudo isto vem a propósito dos ricos e da inveja que muita gente tem deles – e que os jornais tabloides naturalmente exploram. Quanto a mim, nunca ambicionei enriquecer. É que, além de provocar inveja, ser rico dá muito trabalho – e causa muitas dores de cabeça.