CARTA ABERTA AO DR. ANTÓNIO COSTA
OS PORTUGUESES MERECEM A VERDADE
Exmo. Sr. Dr. António Costa,
Em 2011, o País caminhava para a bancarrota com o governo socialista do Engenheiro José Sócrates, pelo que aceitei como cidadão independente colaborar com o PSD, entre Março e Junho desse ano, na coordenação de um programa político tendo em vista a recuperação da credibilidade externa de Portugal e a criação de condições para um novo ciclo de desenvolvimento económico e social.
Na sequência das suas declarações tão surpreendentes, quanto injustificadas, no debate televisivo de dia 9 de Setembro, vi-me forçado a fazer um esclarecimento que deve ser público, na medida em que referiu o meu papel de forma que não corresponde à verdade. Quando se invertem tão descaradamente os padrões do que é verdade e do que não o é, manda a consciência que seja reposta a verdade dos factos de um modo absolutamente cristalino. Porque é de factos que estamos a falar, não de interpretações ambíguas, nem de opiniões divergentes. O propósito de torturar a memória dos Portugueses e de tentar reescrever a história dos factos não pode constar das armas dos partidos numa campanha eleitoral.
O fundamento das suas afirmações segundo as quais foi o PSD “quem chamou a troika” é pura e simplesmente inexistente, como de resto o testemunho dos Portugueses comprovaria. São afirmações sem qualquer correspondência com os factos, tanto no que diz respeito à substância, como à circunstância. Está para além de qualquer dúvida e de qualquer reinterpretação do passado que foram o ex-Primeiro Ministro José Sócrates e o ex-Ministro das Finanças Teixeira dos Santos a chamar a troika. Não só isso é uma evidência tão clara quanto uma evidência pode ser, mas sucede que foram assinadas cartas formais públicas de um e de outro a atestar este facto. Não quero acreditar que estamos perante uma tentativa de riscar da história o que deixou de ser conveniente. Mas tem de haver limites para a manipulação do passado.
O pedido de ajuda externa foi tornado necessário pela situação de pré-falência a que o País tinha chegado no início da Primavera de 2011. A dimensão da emergência financeira refletia-se na proximidade cronológica de uma paralisia dos pagamentos do Estado. Se o País continuasse nessa trajetória, e vedado o acesso aos mercados de financiamento, em Junho, isto é, apenas dois meses depois desta constatação, o Estado não teria recursos para atender ao pagamento de salários e pensões, para não mencionar outro tipo de consequências que decorreriam de uma bancarrota.
Os factos são simples de reportar.
Em primeiro lugar, chegada a troika a Portugal, entenderam as três instituições que a compunham que deviam iniciar uma ronda de conversas com os partidos políticos de representação parlamentar, assim como com os parceiros sociais e outras entidades da sociedade civil. O PSD foi naturalmente incluído neste conjunto de interlocutores.
Em segundo lugar, o PSD teve apenas uma conversa com a troika, representado por uma delegação composta por eu próprio, o Engenheiro Carlos Moedas e o Professor Abel Mateus.
Em terceiro lugar, essa conversa não foi uma negociação. Na referida reunião, o PSD transmitiu à troika as linhas gerais da política económico-financeira do seu próprio programa partidário. A troika limitou-se a escutar-nos.
Em quarto lugar, estava previsto que houvesse um acompanhamento por parte de outros partidos da evolução das negociações entre o governo socialista de então e as instituições. Infelizmente, por desígnio do governo socialista tal nunca veio a suceder. O PSD foi sistematicamente ignorado pelo governo, na pessoa do seu interlocutor para estas matérias o então Ministro da Presidência Silva Pereira. A nossa insistência na obtenção da informação pertinente, e o protesto por o governo deixar os partidos da oposição completamente às escuras, nunca foram bem-sucedidos na reversão desta conduta do ex-Ministro da Presidência. Do outro lado, só encontrámos silêncio e opacidade. Foi por essa razão que o PSD dirigiu quatro cartas (20, 26, 28 de Abril, e 2 de Maio de 2011) ao Ministro Silva Pereira, com conhecimento para a troika também. As cartas são públicas e verificáveis por todos.
Nessas cartas formalizámos o nosso protesto e explicitámos a nossa grande preocupação: qual a base orçamental efectiva com que íamos partir para o Programa de Assistência? Qual o estado real das finanças públicas do País nesse momento decisivo, incluindo a situação das empresas públicas e os compromissos com PPP? Sem informação, que podia e devia ter sido disponibilizada pelo governo, seria impossível planear a política orçamental para os anos de vigência do Programa de Assistência. Seria impossível conhecer com rigor as verdadeiras necessidades de financiamento e, portanto, avaliar a adequação do próprio Programa, nomeadamente do seu envelope financeiro. Aliás, foi por não termos confiança nos números que eram divulgados, nem na definição do perímetro de consolidação, que, na reunião com a troika, o PSD nunca se comprometeu com valores para os défices desse e dos anos seguintes, nem com os montantes de dívida pública. O futuro acabaria por nos dar toda a razão e justificaria todas as nossas apreensões. Quando o actual governo tomou posse, e acedeu finalmente à informação relevante, percebeu-se que o País e as instituições credoras tinham sido enganados quanto à situação financeira do País. Ela era, afinal, bem pior do que tinha sido divulgado, e isso traria consequências muito sérias para a execução do Programa de Assistência, em particular na introdução de medidas adicionais de consolidação orçamental.
Em quinto lugar, a única informação que recebemos foi tão-só o documento final integralmente negociado pelo governo e a troika, isto é, o memorando de entendimento que formalizava o compromisso do Estado português e regulava o Programa de Assistência. A troika fez saber que queria uma carta dos principais partidos exprimindo o mínimo de consenso político na execução futura do Programa. Como ficou explícito na carta que o PSD enviou, demonstrámos o nosso desconforto com todo o processo e com a ausência de informação. E que apenas a situação dramática que o País atravessava, traduzida na necessidade urgente de o Estado português receber o primeiro desembolso do empréstimo externo para impedir um colapso nos pagamentos do Estado, nos fazia anuir a essa subscrição. Mas não sem fazermos um aviso decisivo e que seria muito importante para o futuro. Cito do texto da carta assinada pelo Presidente do PSD, Dr. Pedro Passos Coelho, e por mim, enquanto chefe da delegação, enviada ao Presidente do Eurogrupo, da Comissão Europeia e do BCE, e ao Director do FMI:
“Entendemos que um futuro Governo liderado pelo PSD poderá propor e discutir, no contexto de revisões trimestrais do Programa, alguns ajustamentos ao mix das medidas estabelecidas que não ponham em risco, de forma alguma, a concretização dos objectivos definidos no Programa. De facto, esta flexibilidade pode ser necessária tendo em conta a incerteza, que se mantém, quanto à situação orçamental e quanto aos reais compromissos futuros do Estado.”
E aqui permita-me que contribua para desfazer um mito que V. Exa tem ajudado a difundir. Porque é de um mito que se trata. A saber, que o actual governo foi “além da troika”. Se as metas orçamentais acabaram por ser flexibilizadas em todos os anos do Programa, e para valores menos restritivos do que aqueles acordados pelo governo socialista no memorando original, isso significa que o ir “além da troika” nunca disse respeito à política orçamental. Ir “além da troika” dizia respeito às políticas sociais de que o País precisava (como condições mais generosas na concessão de subsídio de desemprego a segmentos da população mais necessitados, ou o Programa de Emergência Social) e ao programa de reformas estruturais indispensáveis para a modernização da economia e que não eram atendidos devidamente pelo memorando (como, por exemplo, as reformas na Justiça, na Concorrência e na Regulação, no mercado de arrendamento, ou os incentivos fiscais ao investimento.) Dito de uma maneira simples, nas metas orçamentais ficámos aquém da Troika.
Não cumpriria os meus deveres cívicos se não manifestasse por este meio a minha estupefacção com as declarações de V. Exa, e se não ajudasse a esclarecer a verdade dos factos. É o que aqui faço, sendo todas as minhas referências facilmente escrutináveis e verificáveis. A política e o debate partidário não podem estar isentos do respeito pela verdade factual.
Aceite os meus melhores cumprimentos,
Eduardo Catroga
12 de Setembro de 2015