No recurso, apresentado no passado dia 15 pelos procuradores da República José Góis, Inês Bonina e Hugo Neto, são apontados ao Tribunal criminal presidido pelo juiz Nuno Salpico “erros notórios de apreciação da prova”, “contradições” e “factos incorretamente julgados”.
Em causa, recorde-se, está a Privado Financeiras, um ‘veículo’ de investimento criado pelo BPP em 2007 e que apostou na compra de ações do BCP. O MP sustenta que o fundo estava já tecnicamente falido quando os seus cerca de 100 subscritores, sem terem sido devidamente informados disso, foram levados a alinhar num aumento de capital de que sairiam lesados em cerca de 40 milhões de euros – uma tese que os arguidos rebateram dizendo que não quiseram enganar ninguém, o investimento é que acabou por correr mal por causa da crise financeira mundial de 2008. Entre os lesados estão empresários como Pinto Balsemão, Stefano Saviotti e Joaquim Coimbra.
No final do julgamento, o Tribunal acolheu o argumento da defesa: “Os arguidos, como também o mercado e os restantes agentes especialistas, estiveram longe de prever os efeitos de uma crise mundial, na altura, quase iminente e devastadora, que destruiu todas as previsões otimistas, desvalorizando de forma inclemente a generalidade dos valores mobiliários mais ou menos reputados”. Com maior ou menor informação, acrescentou o Tribunal, os clientes sairiam sempre lesados. Por isso, considerou a acusação formulada pelo MP um “mero ensaio especulativo”, salientando que os tribunais não podem tornar-se “remendo de omissões regulativas do mercado”.
Uma desculpa para ‘cambalachos e manigâncias’
“Costas larguíssimas parece ter a crise, argumento supremo que todos os autores de crimes económico-financeiros hoje utilizam para justificar o descalabro a que deram origem as suas manigâncias, cambalachos e crimes” — salienta por seu turno o MP, recordando factos que na sua perspetiva provam que a crise só agravou os problemas de liquidez do BPP.
A propósito, aponta-se o contraste entre o “tom panegírico” com que os juízes avaliaram a conduta dos arguidos e uma outra decisão recente, do Tribunal do Comércio (ratificada em julho pela Relação), que os responsabilizou por “insolvência culposa” do BPP e prática reiterada de ilegalidades desde 2002, que lhes permitiram “deturpar” ao longo de anos a “verdadeira situação patrimonial e financeira do BPP”.
No recurso, o MP contrapõe: “As irregularidades reiteradamente praticadas pelos arguidos já se verificavam antes da crise que afetou a finança mundial. Repetiram-se durante anos e também ao longo do período em que esteve ativo o veículo Privado Financeiras”.
Este ‘veículo’ registou fortes perdas no final de 2007, quando as ações do BCP desvalorizaram. Pressionados por isso e pela necessidade de pagar os empréstimos que o ‘veículo’ contraíra para comprar um forte conjunto de ações do BCP, os arguidos decidiram efetuar em 2008 um aumento de capital, a maioria junto dos subscritores da Privado Financeiras. “Porém, esconderam-lhes a real situação financeira do veículo” e “pressionaram os mais renitentes” a contrair empréstimos junto do BPP, convencendo-os de que era a única maneira de salvaguardarem o investimento que o ‘veículo’ já fizera no BCP – sendo nesta altura que se consumou a burla, diz o MP:
Na altura, “os investidores iniciais, na sua esmagadora maioria não qualificados, caíram no logro, à exceção de dois ou três que, pedindo insistentemente as contas, puderam perceber a situação do veículo, sendo os únicos a não aderir ao aumento de capital” – como foi o caso de Stefano Saviotti e Pedro Bidarra.
Arguidos também foram ao aumento de capital, mas com ‘prémios’ do BPP
Contra a tese da defesa que rebateu este argumento lembrando que os próprios arguidos saíram prejudicados pois também subscreveram o aumento de capital, o MP recorda que o fizeram, de facto, mas de forma sui generis: “investindo o valor de prémios de desempenho no BPP que lhes não eram devidos e cujo pagamento antecipado eles mesmo decidiram”.
O objetivo da burla, diz o MP, foi “manter a solvabilidade do BPP, pagando o empréstimo que a instituição concedera à Privado Financeiras”, manter os respetivos cargos no BPP e conseguirem um lugar na administração do BCP – para entrar na guerra de poder que então se travava neste banco. Esta tese, aliás, também não foi acolhida pelo Tribunal de julgamento, que recusou chamar Jardim Gonçalves a depor, como pretendia o MP e os clientes lesados que se constituíram assistentes neste processo. Trata-se de uma questão que a Relação terá de analisar também.
Jardim Gonçalves
‘Parti pris’ em relação aos ofendidos
Finalmente, o MP acusa o Tribunal de ter usado dois pesos e duas medidas para avaliar os depoimentos dos lesados e os dos arguidos e suas testemunhas. Isto porque, no acórdão, os juízes chegam a dizer que o depoimento dos ofendidos “não merece credibilidade, por ser uma resposta subjugada pela perda de vultuosos montantes”.
Ou seja, contrapõe o MP, “o Tribunal desvalorizou completamente o depoimento de dezenas de testemunhas somente por terem razões de queixa dos arguidos”: “Verdadeiramente extraordinária esta tese! Levada ao absurdo, teria como consequência que jamais poderíamos dar credibilidade a qualquer vítima de um crime, pois esta terá sempre motivo de sobra para, pelo menos, antipatizar com o seu algoz”. E lamenta-se que o Tribunal “não tenha usado o mesmo critério de suspeição relativamente a outros depoimentos de testemunhas”, nomeadamente as arroladas pela defesa, como o economista Mário Patinha Antão e quadros do BPP.
Os clientes lesados neste caso também recorreram, apontando baterias no mesmo sentido e defendendo ainda que, não obstante as absolvições, o Tribunal deveria ter condenado os arguidos no pagamento dos pedidos cíveis de indemnização, pois a lei permite fazê-lo mesmo que não haja condenação crime.
O recurso do Ministério Público (frases):
As absolvições dos arguidos (João Rendeiro, Paulo Guichard e Fezas Vital) suscitam-nos as maiores reservas, parecendo-nos indevidamente fundamentadas e inteiramente contrárias às regras da experiência comum. Configuram um erro notório na apreciação da prova.
Está muito na moda, hoje em dia, o ‘ladrão’ acusar o ‘polícia’ por o não ter impedido de roubar. A culpa passou, portanto, a ser exclusivamente de quem não conseguiu prevenir o crime e não de quem o cometeu, algo que temos visto repetidamente invocado por suspeitos da prática de delitos económico-financeiros. Notável inversão! Algo idêntico se passou, também, no caso dos autos.
Costas larguíssimas parece ter a crise, argumento supremo que todos os autores de crimes económico-financeiros hoje utilizam para justificar o descalabro a que deram origem as suas manigâncias, cambalachos e crimes.
Fosse o arguido apenas um croupier e os apostadores – mutatis mutandis, os clientes – conheceriam perfeitamente as regras do jogo e jamais se poderiam queixar dos azares da fortuna. Um croupier faz rodar a roleta mas ninguém o pode acusar de vigarice, se a mesa não estiver viciada.
As irregularidades reiteradamente praticadas pelos arguidos já se verificavam antes da crise que afetou a finança mundial. Repetiram-se durante anos e também ao longo do período em que esteve ativo veiculo Privado Financeiras.
Não deixa de ser interessante comparar o tom de responsabilização – mais do que isso, laudatório – com que o Tribunal apreciou a conduta dos arguidos – chegando ao ponto de deixar a entender que para um negócio presumivelmente bom é legítimo enganar os clientes, coitados, que carecem de atitudes paternalistas dos intermediários financeiros, pois são meros leigos que não devem ter direito a toda a informação para decidirem por si próprios, pois essa poderia fazer-lhes confusão à cabecinha – e o tom enérgico com que o Tribunal do Comércio censurou a sua atuação culposa ao leme do BPP, cujos destinos comandavam e por cujo naufrágio foram responsáveis.
Os arguidos atuaram ao longo de anos com desfaçatez, sentimento de impunidade e sensação de que poderiam influenciar até o próprio poder político de acordo com os seus interesses.
O Tribunal desvalorizou completamente o depoimento de dezenas de testemunhas somente por terem razões de queixa dos arguidos! Verdadeiramente extraordinária esta tese! Levada ao absurdo, teria como consequência que jamais poderíamos dar credibilidade a uma testemunha alvo de uma tentativa de homicídio…