No recurso a defesa do ex-primeiro-ministro pedia a libertação imediata do arguido defendendo que o prazo de inquérito estaria ultrapassado; o levantamento do segredo de justiça; e ainda a inquirição do Diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal para que Amadeu Guerra confirmasse um contacto que a defesa fez com o Ministério Público antes da detenção de Sócrates e em que este terá manifestado a intenção de colaborar voluntariamente com a investigação.
Só duas destas questões acabaram por ser analisadas pelos juízes Rui Rangel e Francisco Caramelo: a prorrogação do prazo de investigação e a publicidade do inquérito – até agora em segredo de justiça.
Sobre o primeiro ponto, o prazo de inquérito, referem os juízes Rui Rangel e Francisco Caramelo afirmam: “Neste segmento de recurso, o MP tem razão, pois o prazo de inquérito sem arguidos presos atinge o seu termo na data de 19 de outubro de 2015 e o prazo com arguidos presos atinge o seu termo a 24 de novembro de 2015, sendo de atender, como é intenção e bem do MP de considerar o primeiro”.
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O Tribunal deixa mesmo claro que, nesta parte, “o arguido carece de razão”.
A única vitória de José Sócrates surge com o facto de a Relação de Lisboa concordar com o levantamento do segredo de justiça. Isso abre portas a que os advogados dos arguidos consultem tudo o que foi já reunido no processo pelo Ministério Público: documentos, depoimentos de testemunhas e dados financeiros enviados pelas autoridades de outros países.
A decisão, tomada por unanimidade, mantém Sócrates em prisão domiciliária, mas faz cair apenas o segredo interno. Continua a vigorar, porém, o segredo de justiça externo (para os jornalistas, por exemplo).
Recados para Rosário Teixeira
É no separador do segredo de justiça, parte em que é dada razão ao arguido, que surgem as frases verdadeiramente duras dos desembargadores. Frases que vão ao encontro das posições públicas que o desembargador Rui Rangel foi dando a conhecer enquanto o processo ainda não estava nas suas mãos.
Para Rosário Teixeira, os dois juízes deixam uma crítica forte: “O MP é, como sabemos, o dono do inquérito! Ser dono do inquérito não significa que se pode tudo, mesmo fazendo coisas sem qualquer fundamentação legal. O nosso processo penal tem que ser democrático”.
O aviso tem o objetivo de lembrar que para prolongar o segredo de justiça por mais três meses, o Ministério Público teria de fundamentar essa decisão com rigor.
Lembrando que atualmente a regra é a publicidade do inquérito e não o segredo de justiça, os desembargadores vão mais longe e afirmam que não se pode afastar “de forma grave o arguido do conhecimento dos factos incriminatórios que lhe são imputados, fazendo com que jogue um jogo no escuro e na ignorância, não se podendo defender de forma eficaz e adequada”.
Adiantam ainda ter “pena” que “não exista uma cultura de que uma acusação será mais forte e robusta juridicamente, e, sobretudo mais confiante, consoante se dê uma completa e verdadeira possibilidade ao arguido de se defender”.
No acórdão, de 50 páginas, é referido também que “não faz sentido, sendo ilegal, abrir uma ‘auto-estrada’, de um segredo, sem regras e sem ‘portagem’”.
Mas as críticas não se dirigem apenas a Rosário Teixeira. Carlos Alexandre é um dos visados: “E o que é grave é que esta auto-estrada do segredo, sem regras, passou sem qualquer censura pelo sr. Juiz de Instrução Criminal, desprotegendo de forma grave os interesses e as garantias de defesa do arguido, que volvido tanto tempo de investigação, desde 2013, continua a não ser confrontado, como devia, com os factos e as provas que existem contra si”.
A guerra das frases da Relação
Se num anterior recurso, que Sócrates perdeu, os desembargadores citaram um adágio popular – quem cabritos vende e cabras não tem de algum lado lhe vem – agora Rangel e Caramelo decidiram citar Padre António Vieira para dar a entender que a investigação corre o risco de não chegar a lado nenhum: “Quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias”.
Defesa entrega requerimento
Os advogados de José Sócrates afirmaram ontem que este recurso, mais do que uma vitória do seu cliente, era uma vitória do Estado de Direito e garantiram que iam requerer a nulidade de todos os atos praticados desde o dia em que a Relação entende que o processo deveria ter passado a ser publico.
Tudo começa em abril, quando o MP requereu a prorrogação do segredo de justiça e Carlos Alexandre deferiu. Agora, com esta decisão da Relação foi revogada essa decisão.
A defesa entende por isso que todos os atos praticados neste espaço de tempo, nomeadamente a reapreciação da prisão preventiva, são nulos. Na prática defendem o fim da medida de coação apesar de o acórdão não ter dado razão ao arguido nessa parte.
Fontes contactadas pelo SOL, que pediram para não ser identificadas, explicam porém que todos os atos praticados neste tempo foram suportados por uma decisão judicial e que por isso não podem ser anulados.
Explicam ainda que anular o prolongamento do segredo de justiça – o que aconteceu – não significa que anular todos os atos praticados entre abril e setembro, como agora pretende a defesa.
Portanto, garantem as mesmas fontes, a nulidade dos atos, só se poderia dar se, porventura, depois do acórdão agora proferido, o MP não desse acesso aos documentos.
MP só pode recorrer ao Tribunal Constitucional
José Sócrates é suspeito de crimes de fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e corrupção passiva para ato ilícito. Preso preventivamente na cadeia de Évora desde 24 de novembro de 2014, está em prisão domiciliária com vigilância policial desde o dia 5 deste mês.
O Ministério Público não pode recorrer desta decisão de hoje para o Supremo Tribunal de Justiça. Fonte da Relação de Lisboa esclareceu ao SOL que a única hipótese seria o Ministério Público entender que em causa estão questões de constitucionalidade, podendo então recorrer para o Tribunal Constitucional.
A polémica dos comentários de Rangel
Antes da decisão deste recurso, chegou a ser noticiada a possibilidade de o juiz Rui Rangel pedir escusa ou de alguém no processo suscitar o seu impedimento para decidir. Isto por causa de diversos comentários que tinha feito em público sobre a Operação Marquês – e que segundo alguns especialistas desrespeitam o estatuto dos magistrados. Quando Sócrates recusou a pulseira eletrónica e Carlos Alexandre decidiu mantê-lo em Évora, por exemplo, Rangel disse que o episódio dava a impressão de que havia uma justiça “vingativa”.