O prédio em que vivíamos tinha apenas quatro inquilinos – três da nossa família e um alemão fugido do seu país depois do fim da Segunda Guerra Mundial – e marcava imponente presença na Calçada do Galvão, a artéria que sobe de Belém para a Igreja da Memória. Tinha duas palmeiras centenárias no quintal em frente da casa, que morreram recentemente com o flagelo que está a atacar esta espécie.
Toda a minha juventude foi vivida nessa zona da cidade. O Mosteiro dos Jerónimos, a confeitaria que fabrica os famosos pastéis de Belém, o palácio presidencial, o antigo campo de futebol da FNAT, que hoje é um jardim (projetado, curiosamente, pelo meu irmão mais velho), o Estádio do Restelo e o Padrão dos Descobrimentos (a cuja construção assisti) faziam parte do território que constantemente calcorreava.
Com a adolescência alarguei a minha área de descoberta. E a partir do início da faculdade comecei a estudar num café em Algés que dava pelo nome de Ribamar. Ocupava um pavilhão que ainda existe e se vê da Marginal. Quem segue em direcção a Cascais, depois de passar pela estação dos comboios de Algés vê três pavilhões à sua direita, todos seguidos, com dois andares e bastante vidro nas fachadas. O Ribamar é o terceiro.
Nessa época, todos eles eram ocupados por cafés: o primeiro chamava-se Catavento, o segundo Caravela e o terceiro, como dissemos, Ribamar. Hoje, os dois últimos ainda são cafés e restaurantes, mas o primeiro está ocupado, segundo julgo, por uma escola de administração pública.
Essas tardes e noites de estudo no Ribamar eram amenizadas por partidas de matraquilhos ou de bilhar ao fim da tarde ou ao fim da noite. E de vez em quando organizávamos partidas de futebol de 11 que terminavam em grandes almoçaradas, onde alguns de nós apanhámos as primeiras bebedeiras.
Para pouparmos uns tostões, o caminho de regresso a casa era quase sempre feito a pé. Eu e alguns amigos fiéis – o Rui Silva, o Américo Ribeiro e o Castelão Vaz – íamos a pé do extremo de Algés até Belém (ou até à Boa-Hora, perto da Ajuda, onde o Rui morava).
Algés é, pois, uma terra que faz parte das minhas memórias de adolescência e início da idade adulta. E quis o destino que uns anos depois de casar fosse viver para Miraflores, que é um prolongamento de Algés para o interior.
Uma das mais conhecidas artérias de Algés é a Avenida dos Combatentes, onde fica o famoso Sport Algés e Dafundo. Era o coração do comércio daquele bairro, onde se situavam muitas das suas lojas emblemáticas. Foi perdendo importância com as grandes superfícies, mas mesmo assim ainda é hoje uma rua com muita vida: com lojas, bancos, cafés, oficinas e também prédios de habitação.
Paralelamente à Avenida dos Combatentes, para nascente e para poente, há um conjunto de ruas também com bastante movimento, atravessadas por perpendiculares, formando uma malha reticulada. A urbanização deve ser do fim dos anos 40, princípios de 50, num terreno que antes seria ocupado por hortas. Aliás, aquela zona era seguramente fértil, correspondendo ao Vale de Algés.
Confesso que não gosto muito daquele ambiente urbano: as ruas são relativamente estreitas, pelo que as casas são muito ensombradas. Algumas nunca devem apanhar sol. E também por isso as ruas têm por vezes um aspeto sujo. O sol não consegue desempenhar ali o seu papel desinfetante…
Devo reconhecer, no entanto, que aquele tipo de malha urbana favorece uma certa vida de bairro. Como as ruas são estreitas, atravessam-se facilmente. Tudo parece próximo e é feito à escala humana. A prova disso é que há sempre muitas pessoas nas ruas, que parecem um viveiro de gente.
Uma das paralelas à Avenida dos Combatentes é a Rua Luís de Camões. Nesta artéria, mais ou menos a meio, entre Miraflores e Algés, havia uma livraria cujo nome já não recordo mas que tinha uma grande variedade de oferta. Havia livros que pareciam só poder encontrar-se ali. Além de vender livros escolares, tinha obras especializadas em engenharia ou arquitetura, por exemplo, não deixando de exibir na montra os títulos de sucesso, como os romances de José Rodrigues dos Santos ou Margarida Rebelo Pinto, e as obras de uma certa literatura cor-de-rosa. Essa miscelânea é que fazia, aliás, o encanto daquela casa.
A dois passos dali, havia uma loja da Pizza Hut. Havia e há. Um destes dias, precisamente enquanto esperava por uma pizza que tinha encomendado, fui espreitar a montra da livraria e o que vi? Um salão de beleza! Cabeleireiro, depilação, manicura… Uma livraria substituída por um cabeleireiro. Ou seja: um estabelecimento que servia para alimentar o espírito substituído por outro que serve para cultivar a imagem. Um local que vendia objetos que perduram substituído por outro que se dedica ao efémero.
O fenómeno não é propriamente novo. Nas sociedades contemporâneas, o efémero ganha todos os dias terreno em prejuízo do que é mais permanente, ou mais difícil, ou mais trabalhoso. A imagem, a aparência, sobrepõe-se à substância.
As pessoas julgam que podem ser mais felizes cultivando a aparência e desdenhando a vida interior. Essa é a grande ilusão do nosso tempo.
As depressões que atormentam o homem contemporâneo têm em grande parte origem aí: no abandono do culto do espírito em favor do culto da imagem. Porque todo o ser humano, mesmo não o sabendo, tem uma dimensão espiritual. E quando ela é sistematicamente desprezada sobrevém um vazio interior, uma tristeza inexplicável, uma insatisfação sem localização precisa, que conduz à infelicidade e à depressão.
A substituição de uma livraria por um cabeleireiro numa rua significativamente chamada Luís de Camões é uma verdadeira metáfora dos tempos modernos. l
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