Uma vida em fuga

Aos 17 anos, Hyeonseo Lee decidiu fugir do seu país, a Coreia do Norte. Estava cansada da opressão, da censura, e nada sabia do mundo. Com ela trouxe a família para a Coreia do Sul, casou-se com um norte-americano e conta toda a experiência das desventuras em A Mulher com Sete Nomes – História de…

Era uma vez um reino em que o arco-íris cintilava em todo o território, mesmo quando só o sol brilhava. Em que o Querido Líder, indestrutível, conseguiu expulsar, quase sozinho e mal armado, todos os invasores. Em que a comida, abundante, enchia todos os lares de faustos – e saudáveis – banquetes. E em que os súbditos exalavam felicidade. Todos eram felizes, sem exceção. O conflito tinha morrido de velho; as pessoas até se esqueceram do que seria reclamar ou desejar algo para além daquela ditosa felicidade eterna.

Neste cenário bafejado pela virtude, sob os auspícios do Grande Líder, nasceu uma menina. Um dia, aos cinco anos, ao passar na rua, perto de casa, viu uma pessoa angustiada, que dois guardas agarravam pelos braços. À volta tinha-se formado uma multidão curiosa, que aguardava em silêncio um desfecho que todos pareciam conhecer. A menina estranhou, mas nada disse. A sentença foi proferida de forma breve e marcial. Envolveram a vítima com uma corda à volta do pescoço e içaram-na até a vida se lhe escapar num suspiro.

Anos mais tarde, a menina que acreditava viver num «paraíso sobre a terra» recordou este – e muitos outros – episódios num livro. Chama-se hoje, pois teve de mudar de identidade sete vezes, Hyeonseo Lee. A sonoridade é estranha, mas o nome que escolheu como definitivo quer dizer, no seu coreano natal, ‘brilho do sol’ (Hyeon) e ‘boa sorte’ (seo). Ao livro, que escreveu a meias com David John, escritor e editor que viveu nas duas Coreias, chamou A Mulher com Sete Nomes – História de uma refugiada da Coreia do Norte.

Há muito que o mundo olha com pasmo e preocupação para este país asiático, totalmente isolado, cujo regime, inabalável, assenta numa mistura de estalinismo com um modelo imperial asiático. Há quem lhe chame a única ‘monarquia comunista’, um modelo em que o atual chefe de governo – ou, na linguagem oficial, Líder Supremo – Kim Jong-un sucedeu ao seu pai, Kim Jong-il, que tinha sucedido, por sua vez, ao seu pai, Kim Il-sung. O sistema foi rejeitado pelo Ocidente e até pelo bloco soviético, que cortou relações com a Coreia do Norte ainda no auge da sua era.

Para a menina de cinco anos que se retrata no livro, aquela experiência de ver uma execução pública – frequentes e vulgares, bastando para isso mencionar de forma incorreta o nome do presidente – foi apenas um dos tónicos para que a imagem do paraíso derretesse. Nascida em 1980 em Hyesan, no norte do país, perto da fronteira com a China, testemunhou diversas atrocidades, mas a gota de água foi a grande fome dos anos 90, que chegou a ser notícia no Ocidente, apesar da censura espartana. «Comecei a ver pessoas a morrer nas ruas», conta numa rápida entrevista que concedeu à Tabu quando esteve em Lisboa, mais uma escala de uma verdadeira tournée europeia para divulgar o livro, já traduzido em 20 línguas. «Crescíamos a ver execuções públicas e pessoas a desaparecerem no meio da noite. Mas quando vi pessoas a morrer de fome, isso ultrapassava tudo».

Hyeonseo tinha então 14 anos, a idade das dúvidas, algo incompatível com a linha dura do regime. A captação, às escondidas, do sinal da TV chinesa ou a audição, quase em surdina e numa cave, de cassetes de pop sul-coreana inflamaram ainda mais a chama. Um dia, em 1997, decidiu cruzar o rio que marcava a fronteira entre o seu país e a China.

Fez-se valer do apertado sistema familiar que vigora no país – os de classe mais alta, que contam com antepassados dirigentes ou militares, protegem-se. Foi o que a safou: «Alguns guardas fronteiriços eram meus familiares, por isso foi relativamente fácil atravessar», lembra. «Mas eles não sabiam que eu não iria voltar. Se o soubessem, não me deixavam passar».

A ida para a China, um país que lhe parecia muito mais desenvolvido e acolhedor, não foi um mar de rosas. Hyeonseo teve de mudar de nome e de origem – era agora uma sino-coreana. Sob este ‘disfarce’ começava uma longa vida de refugiada. Trabalhou em Xangai, juntou trapinhos com um sul-coreano lá residente, mas o medo não a abandonava.

Qualquer indício que levasse alguém a supor que ela era originária de uma terra acima do Paralelo 38 – a linha que separa as duas Coreias desde o fim da guerra que as cindiu, nos anos 50 – poderia significar um retorno a casa tão imediato quanto forçado. «Eles sabem que os dissidentes têm grandes problemas, que são vendidos como escravos sexuais ou trabalhadores ilegais. Mas ignoram todos os problemas. Não querem que a Coreia do Norte colapse, por isso continuam a deportar dissidentes e a prendê-los».

Casada com o ‘inimigo’

Ainda hoje, na paz de um país onde fala a sua língua, tem casamento e família perto de si, Hyeonseo não se sente em segurança. Reside em Seul, capital do território arqui-inimigo do Querido Líder, e ainda por cima casou-se com um norte-americano, o pacato Brian, que a acompanha nesta digressão. Na sua terra natal Hyeonseo vale hoje pouco menos que o demo das mais baixas profundezas.

Apesar de estar longe do regime, todos sabemos das poucas notícias que chegaram às nossas latitudes sobre a Coreia do Norte, que mesmo no sul houve raptos de dissidentes. «Não me podem deter abertamente», à luz do dia, diz. «Mas há raptos. Fizeram-no no passado. Para estar em segurança gostava de ir para os EUA». É uma impossibilidade. A mãe e o irmão mais novo juntaram-se-lhe no trajeto e vivem também em Seul, mas tiveram igualmente de fazer um trajeto tortuoso para lá chegar: a rota fê-los atravessar a China, ir à Tailândia e ao Laos, até ao destino final.

Até este livro, que lhe tem dado notoriedade por todo o mundo, torna-a um alvo. Hyeonseo Lee já falou sobre a sua situação e de outros dissidentes nas Nações Unidas – levou a família consigo para conhecerem a ‘pátria maldita’, os EUA – e numa TedTalk. Para proteger os que ficaram, trocou nomes e detalhes pessoais nesta obra, tal como não os menciona nesta conversa de fim de tarde em Lisboa. Conheceu pessoas apanhadas a passar a fronteira «no último minuto», famílias inteiras que desapareceram, outras que escaparam deixando alguns entes queridos para trás, onde podem ainda estar a definhar num gulag.

Neste périplo europeu, foi inevitável indagarem-na pelo destino dos milhares de refugiados sírios que procuram novas vidas. Hyeonseo mostrou-se sempre solidária, por ainda ter bem viva a memória do que é «viver nas sombras» e no desconhecido, largar tudo. Só na Hungria os media não lhe fizeram qualquer pergunta sobre o assunto…

À dissidente resta agora, esgotados sete nomes e, talvez como os gatos, as sete vidas que foi obrigada a viver, esperar pelo que a História ainda não reservou à Coreia do Norte, mais de 20 anos desde o colapso da União Soviética – a queda do regime e a unificação das Coreias. Mesmo que vá para os EUA, Hyeonseo diz que regressará a uma Coreia unificada e que vai «manter a cidadania». «É o país onde gostava de estar no futuro».

ricardo.nabais@sol.pt