Malditos fritos

Hoje, na classe média, toda a gente foge dos fritos. O bife é sempre grelhado. E o peixe idem. Nos restaurantes ouvimos os clientes (e as clientes) pedirem salmão grelhado, robalo grelhado, dourada grelhada, peixe-espada grelhado – e só se sai dos grelhados para os cozidos: uma pescada cozida, uma garoupa cozida, uma corvina cozida.

É isto que os médicos e os dietistas recomendam. E o bife não deve ser acompanhado com batatas fritas mas com salada. Se alguém, num restaurante com algumas pretensões, pergunta ao empregado se não tem, por exemplo, peixe para fritar, os outros clientes ficam a olhar para ele com ar enjoado e a pensar: ‘Este deve vir lá da santa terrinha’. E o mais natural é o empregado responder: «Desculpe, mas peixe frito não temos».

Esta aversão aos fritos já se entranhou na maior parte das pessoas – e, como acontece em quase tudo, ninguém questiona essa ‘verdade’. Ninguém faz perguntas. Os fritos fazem mal, ponto final.

A minha atitude em relação a este tipo de questões é um pouco diferente. Gosto de perceber os porquês das coisas. E gosto de confrontar certas verdades que ninguém põe em causa com a minha própria observação da realidade e com os factos de que tenho conhecimento.

Não me custa admitir que, às vezes, tenho um certo prazer em contrariar as ‘evidências universais’, aquilo que toda a gente diz, que ninguém se lembra de contestar. Mas, independentemente desse prazer, quando contrario ideias feitas procuro fazê-lo com argumentos razoáveis.

Assim, pus-me a matutar naquilo que, no tempo dos meus pais e dos meus avós, se comia em casa das famílias da classe média. E cheguei a conclusões surpreendentes.

Nesses tempos, a maior parte das pessoas comia em casa – e na maior parte das casas comia-se sobretudo fritos.

Para lá do clássico bife com batatas fritas e ovo a cavalo – um prato emblemático da classe média portuguesa –, as famílias comiam regularmente peixe frito, pastéis de bacalhau, rissóis, pastéis de massa-tenra, croquetes, pataniscas, sonhos… Tudo frito! E porquê? Porque não se podia desperdiçar comida e era preciso aproveitar os chamados ‘restos’ das refeições – e esse aproveitamento fazia-se quase exclusivamente através daqueles pastéis.

Assim, quando num dia o almoço era, por exemplo, bacalhau cozido, no dia seguinte aquilo que sobrava servia para fazer pastéis de bacalhau, pataniscas de bacalhau ou sonhos de bacalhau. Também se usava o Bacalhau à Braz. De todos os aproveitamentos, só o Bacalhau à Gomes de Sá não ia à frigideira (mas tinha refogado).

E o mesmo sucedia com o peixe: com os restos que sobravam de uma refeição de peixe cozido faziam-se rissóis ou sonhos de peixe.

E com a carne passava-se a mesmíssima coisa: as sobras dos bifes ou da carne assada eram aproveitadas para fazer croquetes ou pastéis de massa-tenra. Só o empadão de carne não era frito.

Nessas casas de família não se faziam grelhados, até porque não havia sítio para grelhar. A única coisa grelhada que se comia eram as sardinhas, mas nem se dizia ‘sardinhas grelhadas’ – dizia-se (e diz-se) ‘sardinhas assadas’. E para se assarem, as casas tinham de ter um quintal onde se pudesse fazer fumo à vontade. Nos bairros populares, era usual as pessoas porem fogareiros nos passeios e assarem sardinhas à porta de casa…

O peixe comia-se, portanto, quase todo frito. A alternativa era peixe cozido ou então assado no forno. Mas este dava muito mais trabalho. Enquanto no peixe frito e no cozido era só pôr
sal e meter na frigideira ou na panela, o peixe assado requeria tempero:
cebola, alho, tomate, pimentão, etc.,
por isso só se comia peixe assado em certos dias em que havia mais tempo para a cozinha.

É verdade que os pastéis de bacalhau, os rissóis, os croquetes ou os pastéis de massa-tenra também davam trabalho a fazer, mas aí não havia escapatória. Era obrigatório aproveitar a comida que sobrava de uma refeição anterior.

Dir-se-á: pois é, mas nessas épocas em que se comiam tantos fritos as pessoas morriam novas e agora morrem velhas. Todavia, nem essa consolação existe. Na geração de que estou a falar, e nas famílias da classe média, a longevidade já era grande. A minha mãe morreu com 94 anos e sempre comeu fritos toda a vida. A minha avó materna morreu com 90 anos. Os meus avós paternos morreram ambos com mais de 80. E com os antepassados da minha mulher aconteceu o mesmo. O meu pai foi quem morreu mais novo, com 75, mas até era de todos o que menos fritos comia…

Mas deixemos os nossos antepassados e pensemos noutros povos. Pensemos em nuestros hermanos, para não irmos mais longe. O que comem eles? Em que consistem as famosas tapas espanholas? Calamares, pois claro, choco frito, tortilla, puntillitas, boquerones e aquela lista interminável de peixes pequeninos que eles pescam aparentemente à revelia da Comissão Europeia. Tudo frito. E não consta que os espanhóis morram mais do que nós…

E que dizer dos anglo-saxónicos? É ver os ingleses a comer ovos estrelados com bacon ao pequeno-almoço. Ou batatas fritas a toda a hora. E o mesmo se passa com os americanos. Em Nova Iorque, por exemplo, à hora do almoço, vê-se passar gente de todas as classes com enormes pacotes de batatas fritas e garrafas de Coca-Cola, tudo comprado na rua naqueles carrinhos que vendem comida quente. Para já não falar da fast food, em que é tudo frito: o hamburger, o peixe, o frango, as batatas, etc. E essa comida é abundantemente regada com os mais variados molhos, desde o ketchup à maionese e à mostarda. Ora também não consta que os ingleses e os americanos morram mais do que nós.

Por tudo isto, o pavor dos fritos faz-me confusão. Não percebo por que razão os fritos fazem tanto mal aos portugueses e não fazem mal aos espanhóis, aos ingleses ou aos americanos. Aquilo que para nós é um ‘veneno’ constitui a base da alimentação de povos que são considerados geralmente mais saudáveis do que nós. Vá lá perceber-se porquê! l

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