O mundo ao contrário

Duas semanas depois das eleições legislativas, os portugueses ainda não sabem quem as vai ganhar, dado que os dois principais concorrentes reclamam o direito de formar Governo. À primeira vista, isto é típico de democracias incipientes de outras latitudes, tendo muitas vezes resultados trágicos, como golpes de Estado e guerras civis. Mas, entre nós, há…

Passos Coelho e Paulo Portas ficarem sem a maioria absoluta, mas, com a sobranceria habitual, fingiram que nada aconteceu, pouco se esforçando, numa primeira fase, por obter o apoio de que precisavam e que só poderia vir do PS. A displicência saiu-lhes cara. António Costa não perdeu tempo e começou a transformar a sua derrota em vitória, apoiando-se, contra todas as expectativas, nos dois adversários do PS que mais o prejudicaram desde a instituição do regime. Aquilo que há uma semana parecia uma manobra para reforçar o poder negocial dos socialistas junto da coligação de direita é hoje dado como praticamente certo: uma frente de esquerdas desde sempre incompatíveis, seja por contingências do passado, seja pelos ideários que as separam, em especial no que diz respeito à Europa. 

O objetivo é conseguir já a indigitação de Costa, enredando o Presidente da República na teia que ele próprio teceu, ao estabelecer, ou fazer crer que só indigitaria um primeiro-ministro que tivesse consigo uma maioria absoluta. Se a coisa falhar, como é previsível, pois Cavaco deve dar a Passos a oportunidade de formar Governo, a frente derrubá-lo-á, caso o grupo parlamentar socialista não se divida, frustrando o plano. E apresentar-se-á depois como alternativa a um Presidente bastante limitado nas suas opções, visto estar impedido de provocar novas eleições.

Costa, secretário-geral do mais europeísta dos partidos portugueses, como afirmou ainda agora numa entrevista, lidera essa nova e inesperada aliança com os dois partidos portugueses mais anti-europeístas. Quer que o país e a Europa se convençam de que esta solução de Governo é não só absolutamente natural mas também estável e duradoura. Encantado como anda a «deitar abaixo o que resta do muro de Berlim», parece-lhe lógica e genuína a prontidão com que o PCP se dispôs a viabilizar um Governo do PS sem abandonar uma única das suas posições de princípio que impediram que tal acontecesse até hoje. E pondo na gaveta uma parte essencial do programa com que se apresentou aos eleitores há duas semanas: preparar a saída do euro, desprezar o défice, renegociar a dívida, ignorar ou talvez rasgar o Tratado Orçamental. 

A cambalhota política do PCP só tem equivalente na rapidez com que, após um momento de pasmo, verdadeiro ou calculado, a coligação PSD/CDS se prontificou a aplicar dezenas de medidas do programa do PS que, segundo dizia há pouco, mergulhariam o país no caos. E que, após duas tentativas goradas para um esboço de diálogo, levanta a voz e ameaça acabar com a conversa, fazendo crer que a culpa está toda do lado de lá, mas sem explicar, por exemplo, por que recusa informação solicitada pela outra parte negocial. 

Vivemos tempos curiosos. Quem ganha, perde, quem perde, ganha e, de uma noite eleitoral para o dia seguinte, o mundo fica ao contrário. Mas dizem-nos que tudo é perfeitamente natural, pois está sempre a acontecer nas democracias avançadas. E aplaudem o regresso da política, embora a política que agora enaltecem seja aquela que antes execravam: a arte do engano, a velha golpada e os jogos de poder pelo poder. Sempre em nome do interesse nacional.

Marcelo e Belém

Além do nome apropriado, não se percebe o que habilita especialmente Maria de Belém como candidata a Presidente da República. A confiança no país, de que fala a própria, parece pouco. E o facto de ser mulher, que, para muita gente, vale como argumento em si mesmo, lembra outras candidatas aplaudidas por essa condição e que, uma vez eleitas, se revelaram um fiasco total. Com a mais do que esperada desistência de Rui Rio já confirmada, Marcelo Rebelo de Sousa, que também apresentara entretanto a sua candidatura, tem boas razões para sorrir.

Luaty Beirão

Um jovem rapper angolano preso «sem que se perceba porquê», como disse ontem Catarina Martins, está em greve de fome e corre risco de vida. Multiplicam-se vigílias e apelos para que o Governo de Luanda resolva a situação antes que seja tarde de mais. Luaty Beirão tem também nacionalidade portuguesa. Isto não lhe confere direitos especiais, mas é um facto que devia pesar alguma coisa, entre países que tanto apregoam a mútua amizade. Mal se percebe, por isso, que ao ministro Rui Machete nada mais ocorra dizer exceto que não tenciona «imiscuir-se».