Alexandre Quintanilha: ‘Nunca me tentei esconder nem andar com uma bandeira’

À beira da estreia no Parlamento, Alexandre Quintanilha tenta nova incursão na política, depois de uma passagem pela Assembleia Municipal do Porto. Distinguiu-se por ter ajudado a erguer a formação científica em Portugal nas últimas décadas, dirigiu o Instituto de Biologia Molecular e Celular, e jubilou-se da Universidade do Porto, cidade onde vive há mais…

Foi mencionado como deputado ‘eleito ou eleita’, numa peça do telejornal da RTP logo após as eleições. O pivô José Rodrigues dos Santos tentou logo justificar-se com um ‘lapso’. Acreditou na explicação? A RTP já lhe dirigiu um pedido de desculpas?

Já recebi um pedido de desculpas. O importante não devia ser se acredito ou não no ‘lapso’. Mesmo que tenha sido um lapso mostra uma falta de preparação grave. Qualquer que tenha sido a razão, mostra falta de profissionalismo.

Foi a primeira vez que se viu confrontado com uma atitude destas?

Não. Já me senti discriminado por ser ‘português’ em França, na África do Sul e até nos EUA (não por ser português, porque poucos sabem onde fica Portugal, mas por ser latino). A discriminação existe em todo o mundo. Mas os racistas, os homofóbicos e os misóginos muitas vezes não têm coragem para admitir os seus preconceitos.

Chegou com Richard Zimler [escritor norte-americano, seu companheiro há 37 anos] ao Porto nos anos 90. As pessoas veriam à partida, nessa altura, com bons olhos a chegada de um casal assim?

Vínhamos com algum prestígio. Eu era o professor de Berkeley. Mas também nunca ligava muito a isso, acho que fui educado e vivi em sítios em que não me apercebia disso.

Onde havia mais tolerância?

Não. Não me apercebia do desconforto. E como nós nunca tentámos nem esconder, nem andar com uma bandeira, acho que a sociedade portuense, desde as pessoas com níveis mais baixos de educação até aos mais altos, até certo ponto aprendeu a respeitar isso. Nunca tive qualquer evidência de um certo afastamento. Ou se calhar tive e não notei, porque não ligo. Pelo contrário, senti, à medida que os anos iam passando, uma certa ternura das pessoas acharem que tínhamos algo especial. No fundo, não há tantos casais que estão juntos há 37 anos…

Nasceu e fez os primeiros anos de escola em Moçambique. Mas diz que se virou a sério para os estudos a partir do momento em que teve um professor especial.

Chamava-se Francisco Lacerda. Era professor de ciências naturais.

Seguiu física na universidade.

E era a área em que eu tirava as piores notas… O professor era um assistente universitário e se calhar estava a falar a um nível que se tornava difícil para nós, mais jovens. Mas aquilo encheu-me de tanta curiosidade… É preciso não esquecer que o século XX é quase o século da física, que sofreu grandes revoluções nos primeiros 60 ou 70 anos. Desde o Einstein a toda aquela gente da mecânica quântica, os novos materiais, os supercondutores… No fim do século é que aparece a biologia molecular de que toda a gente agora fala. Não é de espantar que eu, miúdo, como não percebia nada disso, ficasse fascinado.

Como foram esses anos?

Quando fui para a África do Sul, o primeiro curso em que me matriculei foi engenharia civil. Fiz o primeiro ano, não desgostei, mas quando entrei no 2.º, percebi que só havia homens no curso. E eles eram todos muito formatados, muito engenheiros [risos]. E gostavam de râguebi, e de se embebedar com cerveja, que são coisas de que não gosto [risos]. 

Quis sair?

Quase diria que comecei a sentir-me um bocadinho snob. Não queria estar com aquela gente, queria estar num meio onde  houvesse maior diversidade de género e numa área mais estimulante. Foi aí que passei para a física e matemática. Gostei imenso. Éramos 12 alunos, o outro curso tinha 140. Acho que era quase metade raparigas e rapazes e a origem étnica do grupo era muito interessante. Havia gente de origem inglesa, africâner, portugueses imigrantes, de origem asiática.

Depois é que dá o salto para a biologia?

Foi ainda na África do Sul, estava a acabar o meu doutoramento. Conheci, quase no fim, o Sydney Brenner, que veio receber um doutoramento honoris causa. Foi Nobel muito mais tarde [da medicina, em 2002] e tem vindo cá várias vezes porque fazia parte do conselho consultivo do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) e da Gulbenkian. E eu fui indigitado para  ajudá-lo no que precisasse. Adorei conhecê-lo e numa das conversas ele disse que a biologia estava a entrar em partes interessantes e eu estava a pensar mudar, mas tinha medo porque não conhecia nada. E ele olhou para mim e disse ‘se você quer fazer, faça’. E eu comprei o bilhete de ida – não tinha dinheiro para o de volta – para São Francisco, sem garantia de emprego. Estive os primeiros seis meses com salário de técnico. Eu lavava o material de vidro no laboratório.

Quanto tempo esteve assim?

Estive a aprender a preparar mitocôndrias e cloroplastos, uma data de coisas. Foi muito difícil, porque o choque cultural foi enorme e os meus amigos estavam todos nos antípodas. Mas resisti. Nessa altura também não era possível os meus pais mandarem dinheiro. Só trouxe comigo aquilo que tinha poupado em Joanesburgo, que eram três mil dólares. O que deu para viver durante seis meses… Felizmente, antes disso comecei a receber um salário muito pequenino mas que compensava. Só comprei um carro depois de lá estar para aí seis ou sete anos. É um escândalo, estar na América e não ter carro [risos]. São baratíssimos. Comprei um Cortina GT em terceira mão. Custou uns 400 dólares e eu guardei-o até me vir embora. Quando era diretor do Centro de Estudos Ambientais ainda andava com ele. Havia professores que trabalhavam no meu centro que gozavam comigo, achavam que um diretor não podia andar com um calhambeque daqueles. Eles tinham Lotus, e eu a certa altura já estava tão farto que lhes disse: ‘Vocês precisam do vosso carro para vos dar a vossa importância. Eu dou importância ao meu carro’ [risos].

Viveu um pouco o tempo do apogeu da cultura libertária pós-anos 60.

Era uma época que já tinha passado. Cheguei lá no início dos anos 70. A Janis Joplin, a minha grande heroína, já tinha morrido. Mas o fascinante na área da Baía de São Francisco – fui para Berkeley, que não é uma universidade privada, é pública e é de enormíssimo prestígio – foi a diversidade étnica e social enorme. Havia gente de todas as origens, com todos os interesses, e São Francisco era um verdadeiro melting pot. E conheci o Richard pouco tempo depois. Foi em 1978, eu estava lá há seis anos, e costumo dizer que foi a nossa sorte. Ou pelo menos a minha, porque se não o tivesse conhecido, provavelmente tinha sido infetado com o VIH. Protegemo-nos um ao outro.

Estavam na fase mais perigosa do VIH, quando ainda não havia diagnóstico.

Começou no início dos anos 80. Conhecemo-nos, se calhar, dois anos antes do aparecimento dos primeiros casos. Não se sabia nada sobre o vírus. Havia a liberdade total, de toda a gente experimentar tudo. Costumo dizer que nas drogas ainda sou virgem. A minha droga mais poderosa deve ser o vinho do Porto [risos]. Nunca fumei, detestava o cheiro da marijuana. A única droga pela qual tive alguma curiosidade foi o LSD, mas nunca experimentei porque tive vários amigos que tiveram trips muito más. E disse a mim próprio, ‘se calhar quando chegar aos 90 anos, vou experimentar isto tudo’ [risos].

Conheceu Richard em Berkeley?

Ele estava a trabalhar num restaurante húngaro e estava a fazer uma série de cadeiras na Universidade de São Francisco, de italiano, de guitarra… Conhecemo-nos quase na mesma altura em que a minha mãe me veio visitar pela segunda vez. O meu pai veio depois, passado um ano, passar umas férias. Foi nessa altura que eles conheceram o Richard. Os meus pais adoraram-no, o meu pai achava que ele parecia um trovador da Idade Média [risos]. Entretanto, eu também já tinha conhecido os pais do Richard, em Nova Iorque. Criou-se assim uma espécie de família no processo. É preciso não esquecer que a minha mãe viveu os anos 20 em Berlim. Na altura era a cidade mais sofisticada do mundo.

E o seu pai [Aurélio Quintanilha, também cientista], aceitou normalmente a situação?

Totalmente. Os meus pais sabiam que antes de conhecer o Richard eu tinha-me apaixonado por várias pessoas, mulheres e homens, e que não tinha funcionado. Mas eles sabiam que eu andava à procura de qualquer coisa.

O seu pai sempre tinha sido um libertário.

Sim. Começou como anarco-sindicalista, e acho que o facto de eu ter nascido muito tarde – o meu pai já tinha quase 60 anos e a minha mãe quase 40 – foi uma vantagem, na medida em que os meus pais já tinham passado por todas as fases complicadas da vida. Já não tinham nada para provar, tinham passado por dificuldades enormes. O meu pai foi perseguido por Salazar, depois esteve na Europa no tempo da guerra. Para eles, acho que o mais importante era que o filho fosse feliz.

Entretanto fixou-se no Porto, nos anos 90.

Já tinha começado a dar aulas lá nos anos 80.

Nunca tinha vivido cá?

Nunca. Aliás, achava que era o quarto mundo [risos]. Mas houve pessoas no Porto, em particular uma família, os Rocha Melo, que nos receberam de uma forma tão acolhedora que nós quase sentimos que era uma espécie de terceira família que tínhamos. E isso fez com que o Porto, que era uma cidade cinzenta – não tem nada a ver com a cidade fabulosa que é hoje – se tornasse um sítio confortável para nós.

E por que foram para o Porto?

Foi por causa de Corino de Andrade, que eu conheci uma vez numa reunião sobre membranas biológicas, em 1974. Ele veio falar comigo, já estava a pensar criar o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar e veio perguntar-me se eu não queria vir como professor. Eu disse-lhe que ainda estava a aprender e só teria qualquer coisa para ensinar dali a dez, 15 anos. E ele então convenceu-me a vir uma semana por ano dar um módulo sobre membranas e foi assim que eu conheci o Porto. No fim da década de 80, sentimos que tínhamos de nos vir embora, o reitor era o Alberto Amaral. Perguntei-lhe se achava que fazia sentido, ele e o Nuno Grande disseram imediatamente que sim. O choque foi outra vez muito grande.

Porquê?

Cheguei a uma cidade em que toda a gente era branca. Ainda hoje é assim. Lisboa é internacional e quando aqui venho sinto-me outra vez no mundo.

Diz, muitas vezes, que houve livros que o mudaram. Quais foram?

O alemão Goethe tem três que tiveram um grande impacto: Fausto, de que ele escreveu três versões e é um livro que tem a ver com o fascínio do desconhecido; o Wilhelm Meister, os anos de aprendizagem e os anos de viagem; e As Afinidades Eletivas, um livro de relação humana. Durante a minha licenciatura em Física e Matemática, a meio, parei para fazer um ano de humanidades. Tirei Alemão, Francês, Filosofia e as áreas de Arquitetura. E tive um professor de alemão fabuloso. Mas depois há muitos outros livros: O Homem sem Qualidades do Musil, Em Busca do Tempo Perdido, do Proust – que é uma espécie de bíblia para mim. Mas é curioso, porque o primeiro volume é uma chatice, porque é a história do Mr. Swann e da Odette, que nunca mais vão para a cama [risos]. E depois há muitos outros livros.

E os americanos? Esteve tanto tempo nos EUA…

Gosto imenso do Steinbeck, mas um dos meus grandes heróis é o Ginsberg. O Owl é um livro que transportei toda a vida comigo. Gosto também do Faulkner, do Hawthorne. E gosto muito dos livros do meu companheiro. Ele tem dois ou três que me marcaram muito.

Ele dá-lhe a ler antes de publicar?

Sou a primeira vítima [risos]. Enquanto a mãe dele era viva, era eu e a mãe dele quem lia a primeira versão. Em geral, ele leva um ano a escrever os livros e eu já lhe disse muitas vezes que não posso fazer uma crítica literária. Posso dizer quais são as personagens que me seduzem. E ele diz que é isso que quer.

Não é muito comum alguém da ciência interessar-se tanto pela literatura e pelas artes.

Para mim, há outro efeito curioso, quando as coisas são boas. Quando tinha 16 anos, acabei a escola com notas muito altas e como prenda, os meus pais ofereceram-me uma viagem a Londres. Nessa altura era complicado ir de Moçambique a Londres, eram umas 30 horas para chegar, peripécias enormes. Fui ver dois espetáculos que estragaram a minha apreciação por duas grandes artes. Um deles foi a primeira vez que o Nureyev e a Margot Fonteyn dançaram juntos em Covent Garden. A meio, fiquei de tal maneira comovido que comecei a chorar e não conseguia ver nada [risos]. Tenho muita dificuldade, depois daquela experiência, de gostar de ballet. Tanto ela como ele eram uma espécie de deuses. O outro espetáculo foi na semana a seguir, em que vi a Maria Callas a cantar as árias mais importantes da carreira dela. E também me estragou a apreciação pela ópera, mas aí consegui ultrapassar um bocadinho.

 Foi eleito para o parlamento, mas esta não é a sua estreia na política.

Estive na Assembleia Municipal do Porto, mas por muito pouco tempo. Não foi uma experiência muito interessante.

Por que saiu?

Havendo uma maioria absoluta, a nossa participação limitava-se a chamar a atenção para determinadas coisas. Nada do que nós queríamos propor se realizava. E eu ainda estava a dirigir o IBMC, de modo que tinha muitas outras coisas muito mais interessantes e que me envolviam diretamente. Portanto, achei que, a certa altura, a minha presença não tinha grande utilidade. Neste caso, é diferente. O próximo ano vai ser muito complicado. Talvez a minha presença possa animar um pouco mais a discussão, até porque venho de fora da política. E a razão pela qual aceitei, depois de pensar muito e falar com muita gente, foi porque percebo que há uma certa desconfiança em relação aos políticos.

Tem algum sentido de missão nesta prova política que se avizinha?

Nunca me regi por programas. Estou em Portugal há 20 e poucos anos. Uma das mensagens que me atraíram para vir para cá foi a ideia de que o conhecimento não era um luxo, e que estava na base da cidadania. Havia um apoio muito grande à ideia de que o que nós queremos é ter pessoas mais qualificadas, mais sabedoras, mais amadurecidas, mais conhecedoras daquilo que são as alternativas possíveis. Acho que isso está a ser minado.

Porquê?

Há a ideia de que se calhar fizemos demais, temos gente demasiado qualificada, há muitas oportunidades lá fora e portanto vão lá para fora. Não tenho nada contra as pessoas irem lá para fora, é muito bom que vão à procura de saberem o que querem fazer na vida. Tenho pena é que não haja outras pessoas a virem. Ainda é mais grave que, até ao ano passado, a mensagem que estava a ser transmitida era que o financiamento da ciência até estava a aumentar ligeiramente. E isso é difícil de perceber, porque as bolsas e os projetos de investigação foram cortados drasticamente.

Chegou a falar-se em cortes de 50% de uma assentada.

Os laboratórios associados, os centros de investigação, tiveram também os financiamentos cortados de forma dramática. Houve alguns programas novos de doutoramento que apareceram, mas no total as bolsas eram inferiores às dos anos anteriores. Não se renovaram contratos de investigadores que estavam cá já há algum tempo. Não acreditam no conhecimento pelo valor do conhecimento, ele tem de ser aplicável. Não podemos pedir a um país que teve 300 anos de Inquisição, meio século de ditadura, instabilidades políticas das mais variadas entre a Inquisição e a ditadura, que de repente as pessoas tenham a cultura já inserida dentro da sua cabeça para que isto seja possível. Não é em 20 anos que construímos isto. Leva gerações.

De qualquer modo, estamos a falar de áreas que precisam de financiamento. Se o Estado não se chegar à frente, os privados terão possibilidade de investir?

Isso é uma outra forma de dizer ‘quem paga?’. Não passa pela cabeça de ninguém forçar um jovem de seis anos a passar os próximos 20 anos da sua vida a ter de aprender. A nossa sociedade acha que isso dá mais valor à pessoa. Quem é que paga por isso? É óbvio que a sociedade, se acredita que isso é um valor acrescentado, paga para isso. E é por isso que há impostos. E já agora acrescento uma coisa: não sou contra a austeridade. O que gostava é que todos contribuíssemos para a austeridade. E aquilo que está a acontecer – e não é só em Portugal – é que há 0,1%, ou uma em cada mil pessoas, que está a beneficiar da globalização e que está a ficar muito mais rica. E depois todos os outros, a classe menos rica, a classe média e a classe mais pobre estão a perder no processo. 

Como fazemos para poder inverter essa situação? A Grécia acreditou na eleição do Syriza.

Acho que o Syriza e muitos partidos da extrema-esquerda e da extrema-direita aparecem porque há descontentamento. Houve uma altura em que tive simpatia por essa rebelião – a Revolução Francesa aconteceu porque as pessoas tinham chegado ao limite e nos EUA deu-se a revolta e depois a independência, porque eles estavam a pagar impostos a mais em Inglaterra. Há alturas em que sentimos que só com as palavras não chega lá. Tenho é pena que esses grupos estejam a aumentar porque estão a perceber que no meio o diálogo é muito complicado. A Grécia fez, se calhar, muitas asneiras. Mas o facto de estar nesta situação e de perceber que há, na Europa, quase uma unanimidade na forma como essa situação deve ser tratada, cria uma raiva que eu percebo perfeitamente. O que eu gostava é que isso não levasse a mecanismos de humilhação. Esta coisa de pôr ilhas e monumentos gregos num fundo qualquer é quase criminosa… O caso não podia ser tratado de outra maneira?

ricardo.nabais@sol.pt