Pecado (do) capital

    

Sabemos que já fomos mais felizes. Temos a noção clara que a relação entretanto esfriou mas, apesar de tudo, sabemos que funcionamos melhor juntos do que separados, e mantemos a esperança que a poeira assente e resolva. É um pouco esta a ideia – relativamente otimista – quando falamos das virtudes e fracassos na convivência com o sistema capitalista, segundo Philip Kotler, o guru do marketing, que reformula a máxima de Winston Churchill sobre a democracia. “O capitalismo é o pior sistema à exceção de todos os outros. Churchill diria que se quiséssemos que toda a gente partilhasse a igualdade, estaríamos a partilhar miséria. O capitalismo permite uma recompensa maior para quem trabalha mais e melhor”, explica à Tabu por email. Mas como tudo na vida, está longe da perfeição. Daí O Capitalismo Posto à Prova, uma visão em livro sobre as suas vulnerabilidades, com direito a propostas para a resolução de alguns dos problemas associados a este modelo económico, ou mal menor. “Prefiro modificar e reformar o capitalismo. Não me deixo impressionar por outros sistemas económicos”.

Listado em 2008 pelo Wall Street Journal como a sexta pessoa mais influente no mundo dos negócios, é possível que ao longo da sua formação académica se tenha cruzado com um dos mais de 50 títulos publicados pelo professor norte-americano, que na obra agora editada pela Presença identifica 14 debilidades. Entre elas, está uma das falhas mais gritantes: a incapacidade de pôr termo à pobreza. “Por regra, os negócios não estão focados na ajuda aos pobres, que têm pouco dinheiro para gastar. Focam-se na classe média e trabalhadora. Resulta que os pobres dependem da assistência dos governos e de algumas empresas cuja parte dos lucros reverte a favor de quem precisa. Mas o problema maior é que muitos pobres têm muitos filhos, que se tornarão também pobres, pelas limitações na educação e parentalidade”.

O vicioso ciclo remete a preocupação para outros dramas dos nossos dias. Não estranha que, a páginas tantas, Kotler se demore sobre uma interrogação que provavelmente muitos de nós – mais ou menos céticos – também já teremos feito. No fim de contas, é a democracia que gere o capitalismo ou o capitalismo que gere a democracia? “Gostava que fosse a democracia a governar realmente o capitalismo e não o inverso. Normalmente queremos que sejam os cidadãos a decidir os assuntos públicos. Elegemos os nossos representantes para servir os nossos interesses. Mas esses representantes estão a falhar neste capítulo. Precisam de muito dinheiro para serem eleitos. Recebem-no de ricos doadores e dos seus partidos. Votam vários assuntos de forma a ajustar-se aos interesses desses doadores e desses partidos. Os políticos escutam o que  os lobistas querem, senão arriscam-se a não serem financiados na eleição seguinte. Temos que admitir que os negócios gerem a democracia e não o contrário.”

O caso europeu

Confrontados com a realidade, e para tentar reerguer de imediato os níveis de fé, os altos e baixos neste vínculo levam-nos a depositar as esperanças no músculo cardíaco. Decore: ‘capitalismo com coração’, um conceito que idealmente deveria bater no peito das empresas mais desafinadas neste capítulo. “A melhor prova de que o ‘capitalismo com coração’ funciona está na alta rentabilidade das empresas que o praticam. O livro Firms of Endearment estuda o desempenho de 25 empresas que as pessoas dizem adorar. Todas estas empresas revelaram ser bastante lucrativas. Mostraram ter mais empregados satisfeitos, mais clientes felizes e fiéis, mais fornecedores inovadores e comunidades mais saudáveis do ponto de vista ambiental”. Apontamos a agulha ao solo europeu, onde o sentimento de ‘ternura’ se manifesta, segundo Kotler, de forma mais evidente. “A maior parte das empresas europeias pratica um socialismo democrático. Os governos cobram impostos altos para financiarem educação, saúde, reformas e benefícios sociais para os seus cidadãos. Essas regulação e taxação excessivas têm resultado num crescimento económico lento. E uma das explicações para esta lentidão é que os trabalhadores são super protegidos e os maus trabalhadores não podem ser facilmente despedidos. As empresas resistem em contratar mais empregados pelas dificuldades em terminar esses vínculos sem sofrerem grandes penalizações. Têm mais férias e mais tempo de licença de maternidade. Razões que para o autor justificam o abrandamento do dito ‘ritmo cardíaco’ do sistema. E, ainda assim, ou por isso mesmo, explicam as divergências quando comparamos os dois lados do Atlântico. “Se perguntar a um europeu se gostava de viver e trabalhar numa economia mais competitiva como a americana, responde-lhe que não. Mesmo que o crescimento do seu rendimento seja lento, os europeus preferem a segurança do ‘capitalismo com coração’ europeu.

‘Terapia de casal’

Falar de problemas nesta relação, é recuar no tempo, para encontrar o foco de atrito na ‘conjugalidade’ – e fazer figas para que as dores de cabeça não se repitam tão cedo, apesar de todos os fantasmas. “A crise de 2008 derivou de vários fatores. Vários economistas creditados alertaram para esta bolha iminente em 2007, mas o governo federal falhou na tomada de medidas. Acredito que é possível domesticar os ciclos de negócio do capitalismo para evitarmos uma grande recessão”.

Mas será assim tão simples escapar à reincidência no erro quando as medidas e compêndios parecem alheados do quotidiano? Podemos contar com a razoabilidade dos protagonistas quando sabemos de antemão que no ‘foro sentimental’ nem sempre impera o melhor juízo? “Atribuo a culpa dos nossos falhanços e crises a ambos: departamentos de economia e escolas que a ensinam. A teoria clássica assume que os consumidores e empresários fazem escolhas racionais que maximizam o seu bem estar e benefício. Mas isto está a ser desafiado por um novo comportamento económico, que assume que os consumidores tomam decisões irracionais (os consumidores fumam cigarros, usam drogas e morrem cedo). Estão pouco informados sobre alternativas de consumo, resistem à mobilidade mesmo quando surge uma melhor oferta de trabalho noutro lado. A minha área de influência no marketing conhece melhor o processo de decisão dos consumidores que os economistas. Mesmo as empresas optam muitas vezes por decisões pobres por falta de informação, recusa do risco e vistas curtas”.

Palavras de um professor a caminho dos 85 anos, cujos desejos tanto roubam as deixas a uma Miss Universo (“que encontremos um melhor caminho para a paz mundial”) como entroncam no pragmatismo que marca o ramerrame de qualquer casal. “Que o otimismo prevaleça sobre o pessimismo quando falamos de negócios e consumo. Com o pessimismo as empresas optam por não investir e inovar e é sem surpresa que as coisas pioram. Pelo contrário, o otimismo procura novas soluções e formas de investimento, o que gera crescimento e prosperidade”. 

maria.r.silva@sol.pt