Naquele dia de maio de 1992, Slagalo Srdjan não sabia que tão cedo não voltaria à sua Sarajevo natal. Saiu de carro em direção às linhas de combate sérvias, escoltado pelas forças da ONU que por aqueles dias já se encontravam na Bósnia a assistir de perto à mais sangrenta das guerras que assolou o território europeu depois da II Guerra Mundial.
Há mais de um mês que Sarajevo estava cercada, e assim se manteve por quatro longos anos. Mas naquele dia de maio, Slagalo, então com 27 anos, não teve medo. “Numa situação como aquela as pessoas estão como que anestesiadas. Não sentem o que normalmente se sente. Pensam que estão a viver um pesadelo e que, quando o sol nascer, a normalidade vai regressar”.
Slagalo é sérvio, nasceu em Sarajevo no seio de uma família trabalhadora da classe média. “Só o meu pai trabalhava. A minha mãe estava em casa e tomava conta de mim e do meu irmão mais velho. Éramos uma família normal. Vivíamos bem. Éramos felizes”. Sérvios, bósnios e croatas conviviam “sem qualquer problema”. “Muitos dos meus colegas de escola eram muçulmanos [bósnios] e isso nem sequer era uma questão. Sabíamos que eram muçulmanos porque os nomes eram diferentes e porque na altura do Ramadão nos ofereciam bolos”, explica.
Slagalo terminou entretanto o liceu, onde tirou um curso de técnico de máquinas. Mas o jeito para a bola havia de lhe mudar o destino. Começou cedo, aos nove anos, a jogar num clube de bairro em Vogoska, nome da zona onde vivia, junto a uma das saídas de Sarajevo. Mais tarde veio o convite para jogar na 1.ª divisão, no FK de Sarajevo, o principal clube da cidade. Passou a ser conhecido e reconhecido por todos. Ganhava bem, tinha uma vida boa, igual à de qualquer pop star da região. “O futebol não rendia o que rende hoje, mas ganhava quatro ou cinco vezes o ordenado médio da altura”. Até ao dia em que tudo desmoronou…
No dia 4 de Abril embarcou num avião para Belgrado. A 6 era dia de jogo grande. O FK de Sarajevo ia jogar no campo do rival Estrela Vermelha. Foi o último jogo que fez no seu país. “Já estávamos no hotel quando começámos a ouvir no rádio que havia grandes manifestações em Sarajevo. Não percebemos muito bem o que se estava a passar”. O clima há muito que andava tenso. No início desse ano, em fevereiro, o povo da Bósnia e Herzegovina decidiu-se em referendo pela independência. “Quando os Estados Unidos reconheceram a Bósnia como um país independente começou tudo”, assegura Slagalo, até porque os líderes sérvios não reconheciam as pretensões da Bósnia.
Sarajevo foi cercada no dia 5 de Abril. No cimo das quatro colinas que rodeiam a cidade, forças sérvias impediam entradas e saídas. Na cidade, milícias muçulmanas atiravam a matar a quem se dirigisse às barreiras sérvias. O caos instalou-se.
A equipa do FK de Sarajevo perdeu o jogo. “Só falávamos da situação que se vivia na nossa cidade. As comunicações já eram muito más e tínhamos dificuldade em falar com os nossos familiares”. Para piorar o cenário, ficaram retidos em Belgrado quase uma semana, uma vez que o aeroporto internacional de Sarajevo estava encerrado. Foram dias de angústia e de incerteza. “Todos acreditávamos que a situação se ia resolver politicamente. Como poderia haver uma guerra?”. Numa manobra de propaganda, o aeroporto de Sarajevo abriu novamente e o voo com a equipa de futebol foi o primeiro a aterrar. À chegada tinham equipas das cadeias de televisão a recebê-los. “Parecia que tudo tinha voltado ao normal”. Mas não. O campeonato de futebol foi suspenso. Aliás, tudo foi suspenso. As pilhagens noturnas eram uma constante numa cidade escurecida pela falta de luz, e muda pela falta de comunicações. “Só conseguíamos ver um canal de televisão muçulmano e a informação era, obviamente, tendenciosa”, conta. Apesar dos esforços, raramente comunicava com a família. “Eu já não morava com os meus pais e era muito difícil conseguir falar com eles e com o meu irmão”.
No final da segunda semana de cerco a realidade impôs-se. “Já não valia a pena pensar que era passageiro. Pensar que se iria chegar a um acordo e que as tropas se iam retirar. Já não valia a pena enterrar a cabeça na areia. A situação não se ia resolver tão cedo e era preciso agir”, conta. Juntamente com os vizinhos, Slagalo construiu portas de ferro que blindavam a entrada do prédio e, à noite, quando mulheres e crianças iam dormir, os homens juntavam-se para proteger o edifício. “Muçulmanos, sérvios, croatas, fazíamos isso juntos. Não percebíamos quem era o inimigo nem o que se estava a passar. Sabíamos que corríamos perigo, só isso”.
Uma saída de emergência chamada Portugal
Mas num cenário de guerra, quando as balas trespassam os vidros das janelas, quando o medo e a desconfiança tomam conta de tudo, as posições tendem a extremar-se. Os relatos de sérvios que atacaram muçulmanos ou de muçulmanos que atearam fogo a casas de famílias sérvias começaram a multiplicar-se. “Foi nessa altura que percebi que a guerra tinha vindo para ficar. Já não era possível trabalhar em conjunto. O inimigo estava definido e tu tinhas que estar com os teus. Mesmo que não tivesses afinidades com eles sabias que, pelo menos, não te iam matar”. O medo tomou conta da cidade e com ele veio o ódio e a vingança. “Quem nunca passou por uma guerra não consegue entender. Há uma mistura tão grande de sentimentos que não consegues alinhar. E depois há o medo, que toma conta de tudo, mas que também é o que te permite sobreviver”.
E foi com o pensamento na sobrevivência que Slagalo pensou noutra saída de emergência. O sérvio tinha amigos que jogavam futebol no campeonato português e que já lhe tinham falado da possibilidade de vir jogar para cá. “Era uma coisa que tinha na minha cabeça. Qualquer jogador gosta de sair do seu país e de ir jogar para o estrangeiro. É a consagração da carreira”. Nessa altura a ideia ganhou força. “Começou a falar-se da possibilidade de ambos os lados fazerem reféns que seriam usados como moeda de troca. Eu era uma figura pública e fiquei com medo que me pudesse acontecer isso”. Além de que o ambiente na cidade era já insustentável. Não havia comida, só no mercado negro e a preços exorbitantes. “Só havia luz algumas horas por dia, os telefones não funcionavam. Estávamos isolados”. Slagalo admite que, se não tivesse a promessa de um emprego em Portugal, “nunca teria saído”. “Tinha ficado, tinha lutado pelo meu país”. Mas, em tempo de guerra, raramente a realidade é branca ou preta. “A verdade é que o dinheiro que eu vim ganhar serviu para ajudar a minha família, e eu sabia disso na altura. Na guerra ninguém trabalha, não há como ganhar dinheiro e, se há altura em que é preciso ter dinheiro, é durante uma guerra”.
Naquele dia de maio de 1992, Slagalo Srdjan deixou para trás a mãe, o pai e o irmão mais velho. Deixou ainda a namorada, muçulmana. Antes de vir certificou-se que ela ficava “do lado muçulmano”. Soube, mais tarde, que ela tinha sobrevivido à guerra, mas o contacto perdeu-se. A mesma sorte não tiveram muitos dos seus amigos de infância que, de um de outro lado, morreram em combate. “Eu consegui sair. Muitos não conseguiram, ou não quiseram, e tiveram um fim trágico”.
Apesar de ter alcançado as linhas militares sérvias que cercavam a cidade, a aventura de Slagalo estava apenas a começar. “Consegui sobreviver e chegar a território amigo, mas não sabia como ia sair de lá”. Isto porque Slagalo teria, como qualquer homem, que pegar numa arma e lutar ao lado das forças sérvias. Fugir era desertar. “Eu era uma pessoa conhecida e consegui convencê-los que não estava a fugir. Eles acreditaram que eu tinha uma proposta para jogar no estrangeiro e deixaram-me sair”. Rumou a Belgrado e, depois de ter os vistos necessários, entrou num avião e veio para Portugal”.
Chegou no dia 6 de Junho, mas só em Dezembro voltou aos relvados. “Os clubes de cá não conseguiam falar com o FK de Sarajevo por causa das dificuldades de comunicação e a verdade é que eu tinha um contrato válido com aquele clube. Tinha que me desvincular para conseguir fazer outro contrato”.
O primeiro clube português onde jogou foi o Atlético Clube de Portugal, de Lisboa. “Não estive lá muito tempo. Comecei a dar nas vistas e fui para o Sporting de Espinho, que na altura estava na 1.ª divisão”. Seguiu-se o Varzim, onde esteve três épocas, o Leça e o Famalicão. Terminou a carreira de jogador profissional de futebol na época 2001/2002, no Esposende, da 2.ª divisão.
Acumulou saudades durante uma década e, em 2002, regressou à sua Sarajevo. Ou melhor, a uma Sarajevo que já não era a sua. “As cidades são feitas pelas pessoas que lá habitam. Elas é que dão vida às ruas, às casas, aos locais. O resto é pedra e cimento”. Mas a sua gente já lá não estava. Depois do acordo de Dayton, que ditou o fim da guerra em 1995 e que dividiu o território, Sarajevo ficou para os bósnios. Os pais e o irmão de Slagalo, juntamente com mais de um milhão de sérvios, foram realojados. Ocuparam casas que tinham pertencido a muçulmanos que, por sua vez, também haviam sido realojados. “Muita gente teve que sair de suas casas e rumar para cidades que passaram a pertencer ao seu povo. Mesmo que não as conhecessem, mesmo que não quisessem ir. Não houve escolha”. O irmão de Slagalo, engenheiro mecânico, casou e teve dois filhos durante a guerra. “Tinha uma família, teve que ir em busca de trabalho”. Optou por Belgrado, a cidade grande do lado da Sérvia. Os pais acompanharam-no, e é lá que vivem ainda hoje.
Quanto a Sarajevo, Slagalo baixa o olhar e murmura que “já não existe”. Pelo menos como ele a conheceu. E é por isso que diz que não tem para onde regressar. E é por isso que diz que se sente português e que é em Portugal que quer educar o seu filho, de 9 anos.
Julga que é isso mesmo que acontecerá com os refugiados sírios que por estas semanas serão realojados na Europa. “Muitos nunca regressarão ao seu país de origem. Vão ficar em Portugal, e nos outros países que os acolhem, porque é aí que vão educar os filhos, ter mais filhos, ter um emprego, uma vida. Ter que sair outra vez seria dramático”. Slagalo encontra muitas semelhanças entre a guerra da Bósnia e a da Síria, desde logo por se tratarem de duas guerras civis. “Está tudo decidido na cabeça de quem manda. O orçamento de mortes está feito. As pessoas são marionetas do poder político de todos os países que querem ganhar com a guerra”.