Médico de família

Fernando Namora, médico-escritor, deixou registado em vários romances – mas sobretudo em Retalhos da Vida de um Médico – um modelo de exercício da profissão que praticou em jovem: o de médico de aldeia.

O médico de aldeia era um clínico que, além de assistir os habitantes do povoado onde tinha consultório (Namora viveu em Monsanto), cobria um vasto conjunto de famílias espalhadas pelas cercanias vizinhas. E que muitas vezes não cobrava os seus serviços aos mais necessitados.

O escritor descreve episódios – uns pitorescos, outros cómicos e muitos dramáticos – das suas deslocações pelo meio das serras, algumas noites fechadas, no meio de tempestades, por caminhos pedregosos, em cima de um burro, para atender um doente que estava a morrer ou uma grávida prestes a dar à luz. Os médicos de aldeia chegavam a ter de dar assistência a animais!

A este tipo de clínico também se chamava ‘João Semana’ – nome de uma das personagens d’As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis (também ele médico e escritor).

A par de Júlio Dinis e Namora, Miguel Torga (pseudónimo de Adolfo Rocha) foi outro dos médicos que atingiram notoriedade na escrita. Tinha consultório no Largo da Portagem, uma concorrida praça de Coimbra à entrada da rua principal da cidade. Mas – julgo eu – o modo como exercia a medicina não era exatamente o mesmo dos outros dois. Adolfo Rocha era um médico de cidade, que recebia doentes no consultório mas não tinha a rotina de se deslocar a casa deles e muito menos fora da urbe.

 O meu avô materno também era médico. O seu consultório era na Calçada da Ajuda, em Lisboa, quase em frente da porta lateral de acesso ao Palácio de Belém e um pouco acima do (antigo) Museu dos Coches. Chamava-se Virgílio Paula e cobria uma vasta zona que englobava Belém, Ajuda e até Alcântara.

Belém, nos anos 40, era quase fora de Lisboa. E tinha características próprias. Por isso, o meu avô Virgílio não era bem um médico de cidade – era aquilo a que se poderia chamar um ‘médico de bairro’. Dava consultas no consultório e ia a casa dos doentes. Como nessa altura havia muito menos médicos – e o meu avô depressa ganhou fama –, também dava assistência à Presidência da República (no tempo de Carmona), ao Ar Líquido (empresa francesa que ainda existe, com sede na Junqueira), e à Carris (essa mesmo, a dos elétricos), além do CF «Os Belenenses», do qual foi fundador, e da própria Seleção Nacional de futebol.

Assim, embora não estivesse da província, era um pouco um João Semana. Quando faleceu, ainda jovem, com 59 anos, uma multidão de ciganos juntou-se no exterior da sua casa, na Calçada do Galvão, a chorar a sua morte. É que ele dava-lhes consultas grátis, e às vezes fornecia-lhes gratuitamente medicamentos.

O consultório do meu avô foi herdado pelo médico de clínica geral Jorge Sá-Chaves, que ainda foi muitas vezes a nossa casa, quando havia alguém doente. Também morreu novo, com sessenta e poucos anos. Aquele consultório dir-se-ia amaldiçoado.

Assim, os meus dois filhos já foram assistidos por outro médico, Manuel Martins, mais ou menos da mesma idade que Sá-Chaves mas que viveu muito mais tempo. Tinha consultório em Algés e, depois de terminar as consultas, deslocava-se a casa dos doentes em visitas que se estendiam pela noite dentro. Conta-se que normalmente jantava num restaurante de Algés, já bastante tarde – por volta da meia-noite –, e quando acabava ainda ia fazer quatro ou cinco consultas ao domicílio.

Não vale a pena explicar por que razão este tipo de médico de família era de uma grande utilidade. As pessoas acamadas não tinham de sair de casa para serem observadas e não iam encher as urgências dos hospitais. E psicologicamente era importante um doente poder ser visto no seu ambiente, não tendo de esperar várias horas numa sala de espera muitas vezes deprimente. Além de evitar o risco de contágio que uma ida ao hospital sempre representa.

Claro que, quando tal se justificava, o médico de família enviava o doente para o hospital. Mas, aí, já ia com um diagnóstico feito – ou pelo menos apontado. Há uns anos, o dr. Rogério Carmo, um dos raros médicos de família à antiga que ainda subsistem, diagnosticou uma apendicite ao meu filho mais novo – e mandou-o imediatamente para o hospital. Mas já ia encaminhado.

Os médicos tipo João Semana são espécies em vias de extinção. A designação ‘médico de família’ ainda existe, como se sabe, mas já não tem nada que ver com o passado: são clínicos que dão consultas nos centros de saúde, exigindo a deslocação dos doentes.

Deslocação que, se na cidade já é por vezes difícil, no campo é complicadíssima. As pessoas que vivem longe dos centros urbanos estão cada vez mais entregues a si próprias. Com a desertificação do interior e a concentração dos serviços nos grandes centros, os doentes têm de se deslocar às vezes dezenas de quilómetros para ir ao médico – sendo obrigadas a chamar um táxi ou a alugar uma ambulância para esse fim.

O que não deveria acontecer, pois as ambulâncias só deviam servir para serviços de urgência e não como veículos de transporte…

Este é mais um sinal de um mundo em mudança. Mas enquanto há mudanças para melhor, que facilitam a vida às pessoas, esta é uma mudança para pior. Pior, claro, para os doentes – pelas razões apontadas – mas também pior para os médicos.

Embora eles digam que não, é óbvio que os médicos de aldeia eram pessoas que se realizavam mais profissionalmente e humanamente. Tinham uma vida mais incómoda, sem dúvida, mas sentiam-se um bocadinho deuses: salvavam vidas e viam o ser humano na sua integralidade – e não aos bocados, como acontece hoje com os especialistas. Basta ler Fernando Namora, ver o orgulho e a alegria que punha nalgumas descrições, para perceber até que ponto o exercício da medicina lhe provocava satisfação e consciência do dever social cumprido.

O médico de bairro, como o meu avô Virgílio, ainda era um pouco isso. Mas também já esses médicos desapareceram. Ou quase. Isabel Pacheco, uma médica da Unidade de Saúde Familiar João Semana, situada na terra natal de Júlio Dinis, dizia recentemente que ainda conheceu vários médicos incapazes de cobrar consultas a quem pouco tinha, e adianta: «Mas eram antigos, já quase todos falecidos».

Com a morte dos discípulos de João Semana, a sociedade ficou mais pobre. Clinicamente, mas também humanamente mais pobre.

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