Crê-se que sob inspiração do surrealista Mário-Henrique Leiria e dos seus Contos do Gin-Tonic, o narrador vagueia por aí, qual flanêur, recolhendo impressões da vida vivida, lida e pensada. Desses fragmentos que recolhe enquanto por eles passa (ou passam por ele) faz surgir, sempre em movimento, as suas personalizações do mundo. Surgem do nada, isto é, surgem à medida da sua própria linguagem e da sua digestão do tempo. Leia-se, por exemplo, o texto ‘Sem Rede’: “O trapezista ainda perguntou: – Achas mesmo? Sem rede? O amigo malabarista, às voltas com o telemóvel: Pois é, sem rede. Foi impossível chamar o pronto-socorro”.
Utilizando a clareza como estratégia, mais do que como valor, atento às camadas que separam as coisas dos significados, Venâncio inicia-nos, mais, atira-nos de cabeça (e sem rede), na arte do fragmento como género retórico. Procura e organiza sinais, sabendo que tudo o que vemos e que tudo o que escrevemos nunca será senão inacabado e fragmentário. Assim, independente, autónoma face à experiência, mas alimentando-se dela, a imagem literária cria-se a si mesma. É o que acontece neste livro, como num beijo técnico, que é sem o ser o mais sentido de todos os beijos.
Fernando Venâncio é crítico literário, professor, ensaísta, escritor, autor dos romances Os Esquemas de Fradique (1999) e El-Rei no Porto (2001) e de livros de contos e de crónicas. Sabe trabalhar, sopesar a frase e a narrativa. Estes seus fragmentos, histórias pequenas e pequenas histórias, são, como as anotações de La Bruyère ou os exercícios de estilo e forma de Pascal Quignard ou as experimentações surrealistas de Mário-Henrique Leiria, matéria literária antipedante e antissistemática, pessoalíssima e cheia de caráter.
Beijo Técnico e outras histórias
Fernando Venâncio Ulisseia
116 págs.,
12.50 euros