Alvaiázere: Onde votar é uma tradição laranja

Em Alvaiázere quem não é do PSD tem medo. Quando se fala de política o tom de voz baixa, os ombros ficam tensos e os olhos perscrutam a rua por cima do ombro. Esta vila do concelho de Leiria foi, a par de Vagos, em Aveiro, dos concelhos onde a coligação teve maior votação (68,68%).…

“Somos persona non grata no concelho”, atira Isabel Ferreira, empregada comercial. É socialista, costuma participar nas campanhas e sentiu na pele desde pequena o “estigma contra a esquerda”. “As pessoas não distinguem o PCP do PS e só falta dizerem que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço”, conta. O pai foi dirigente local do PS e a mãe sempre o acompanhou convictamente. “Chegámos a ter setas em direção à nossa casa que diziam ‘Kremlin 400 metros’, ‘Moscovo 200 metros’. Sofri muito”, desabafa a mãe de Isabel.

De lenço laranja às pintas brancas ao pescoço, muito direita e bem penteada, a mãe de Isabel prefere não dizer o nome e tenta dissuadir a filha de revelar o seu. “Se não éramos do PSD é porque éramos do PCP e então éramos perseguidos. Sofremos muitas ameaças”, diz, de mãos embrulhadas no regaço. “Nos anos 80 o meu marido era pelo Ramalho Eanes e atiraram um morteiro contra a minha casa às 3h da manhã. Achava que tinha explodido”.

Fala rápido ao mesmo tempo que as memórias lhe chegam, na ânsia de as partilhar. “As pessoas diziam-me: ‘Fico triste porque és tão boa, mas és desse partido’. Aqui reina o espírito de intimidação. Iam a casa das pessoas mais velhas e diziam que às que causavam despesa os comunistas davam uma injeção. As pessoas, ignorantes, acreditavam”, conta. “São pessoas que não conseguem analisar politicamente o melhor partido. Muitas são analfabetas e votam porque é o partido do ‘Sr. Dr.’. E eu dizia-lhes: ‘Nunca votem no partido do rico!’ Mas as pessoas não distinguiam quem as ajudava de quem se aproveitava delas. E isso causava-me uma revolta muito grande”.

As eleições autárquicas são mais aguerridas que as legislativas. E a política às vezes é levada ao extremo. “Uma vez agarrei pelos colarinhos um mandatário do PSD e disse-lhe que não voltava a assustar e a enganar as pessoas”, recorda. “Qual foi o pior resultado do PSD? Nunca houve”, conclui a filha Isabel.

Desde 1985 que a Câmara Municipal é PSD. O grande responsável é Álvaro Pinto Simões, que por lá ficou 20 anos. Fez tudo o que havia para fazer: das piscinas municipais, ao quartel da GNR e dos bombeiros, ao tribunal, à Casa da Cultura, passando pela biblioteca, pelo museu, pelo mercado ou pelo parque multiusos e a sede da nova escola tecnológica. Mas não é só pela obra que o ‘senhor presidente’, como ainda hoje é chamado, conquistou a população, mãe de Isabel incluída. “Era muito carismático e se fosse do PCP ganhava na mesma”, diz.

Fomos encontrá-lo em Maçãs de Dona Maria, uma freguesia do concelho de onde é natural, de ténis e calças de ganga. “Tinha o gabinete sempre aberto, nunca tive secretárias. Se as pessoas queriam falar comigo era só bater à porta e entrar. Abordavam-me na rua. Às vezes estava a almoçar e fazia o atendimento à mesa. Não havia qualquer barreira entre o presidente e as pessoas”, sublinha.

Esta proximidade própria de terras pequenas – Alvaiázere tem pouco mais de sete mil habitantes com uma maioria de população envelhecida e com pouca escolarização – é uma vantagem nas batalhas políticas para quem já está no poder. E a realidade local transpira para a nacional. “As pessoas sempre foram muito fiéis ao PSD. Gostavam muito do Sá Carneiro e o partido começou a trabalhar cedo aqui”, justifica o antigo presidente que hoje dirige o lar da Casa do Povo de Maçãs de Dona Maria.

Os presidentes que se seguiram ao ‘Dr. Varito’, como também é carinhosamente apelidado, beneficiaram da sua popularidade. “As pessoas confiam no partido pelo percurso dos seus dirigentes”, acredita Célia Marques, que assumiu as funções de presidente em maio, após a renúncia do anterior autarca. “Toda a gente sabe onde mora o presidente e como eu não moro aqui as pessoas vão a casa dos meus pais deixar recado”, ri-se.

A atual presidente ensaia outra explicação para Alvaiázere ter sido dos concelhos onde mais se votou na coligação: “Nos meios mais pequenos não se sentem de forma tão extrema os cortes e as carências. Os transportes públicos não existem. E mesmo quem ficou desempregado tem um pedacinho de terra para cultivar.” A proximidade com a população é para manter, garante, com projetos como o transporte porta a porta, ainda em fase de implementação, ou a ‘Câmara Solidária’, que vai a casa dos mais idosos consertar pequenas coisas que estes já não conseguem fazer, como um estore ou uma torneira.

A Câmara Municipal ainda é o principal empregador. “Há dois, três anos quem se filiava no PSD tinha qualquer coisa prometida. Hoje já não é bem assim, o acesso está mais apertado”, revela um funcionário local. “Nunca pedi cartão de nada”, refuta Pinto Simões. O desemprego jovem é o mais dramático e por isso muitos fogem do concelho. “Os caciques locais arrastam os jovens. ‘Se votarem em nós têm emprego’, dizem. Alguns acreditam”, diz uma mulher desempregada que prefere o anonimato.

À mesa de almoço, as conversas alternam entre o futebol e a política. Teríamos pedido o bacalhau com migas se soubéssemos que eram migas de chícharo, como depois nos indicam. Alvaiázere é a capital do chícharo, uma leguminosa de aspeto achatado entre o grão e o tremoço, de que as gentes da terra se orgulham. Há receitas para todos os gostos, de sobremesas a sopas e saladas, a pratos de carne ou peixe. Albino Mendes veio de Carvalhal de Pussos almoçar com amigos. Baixa a voz para nos dizer que votou PS e encolhe os ombros: “As pessoas são idosas, sempre votaram PSD. Foi quase sempre assim”.

O primeiro autarca eleito a seguir ao 25 de Abril foi Filipe Santos e concorreu pelo PS. Mas em 1979 elegeu-se pela AD e em 1982 pelo CDS. “Talvez a movimentação tenha confundido a população”, considera Álvaro Pinto Simões, que foi seu aluno no liceu.

Encontrar quem queira falar de política abertamente é mais difícil que encontrar um comunista. Dizem-nos que só há três ou quatro e estão escondidos. Inês Simões, 20 anos, trabalha no café da esquina que dá para a igreja. Conta-nos que a JSD é muito ativa e acredita que Passos Coelho “fez um bom trabalho a endireitar o país”. Quanto a um Governo de esquerda, diz que as contas do país “ainda não permitem repor os cortes como eles prometem”.

Um homem de boina, pele morena do sol, nariz adunco e corpo magro, entra no café. Por que vota tanta gente na coligação? “Por acaso até votei”. Porquê? “Porque votei. É sempre hábito”. A resposta é pronta e a justificação chega logo a seguir: “Sou retornado. Recebo a pensão mínima que não foi cortada e estou isento das taxas moderadoras.” Outro homem que está ao balcão, reformado de 83 anos, personifica o senso comum: “Tudo o que vier é igual por isso eu deixava-me estar. Este tratou de resolver os problemas, milagres ninguém faz”.

Na Casa do Benfica de Alvaiázere é que ninguém está interessado em política. Dois homens jogam às cartas na penumbra. “Já tenho idade para ter juízo”, diz-nos o de cara e mãos sapudas. Cá fora, uma filha pega a mãe, de bengala, pelo braço. “Não estou interessada em dar a cara, somos pessoas conhecidas e caía o Carmo e a Trindade. Só lhe digo que isto é uma terra de velhos arreigados ao passado em que meia dúzia de ricos domina a situação”.

Seguem no seu passo curto e incerto e nós seguimos até uns campos de azeitonas, onde muitos homens do concelho trabalham nesta altura do ano. “Tenho fé que o Seguro tenha lá os deputados do lado dele e aguente este Governo”, confessa um. “A ladroagem é a mesma”, diz outro. “Nas primeiras votações davam petiscos aos que votavam. Aqui quem não é por mim é contra mim e fazem-lhes a folha”, continua.

Por duas vezes em Alvaiázere ouvimos os nomes de Álvaro Cunhal e Salazar associados. “Foram os políticos mais sérios”, diz um dos homens, enquanto separa a azeitona boa da que já vai causar acidez ao azeite. Antes, já a senhora do lenço laranja nos tinha mostrado a admiração por Cunhal “que deu as costelas na prisão pela liberdade de Portugal” e por Salazar, “que morreu pobre”.

Nesta vila da Beira Litoral, a meio caminho entre a modernidade e o esquecimento, onde há ciclovias e candeeiros ao estilo  futurista a par de casas de pedra, votar laranja é uma tradição, quase uma religião. “Todos os idosos fazem questão de votar. Mesmo doentes sentem que votar é uma obrigação sua”, conta a presidente Célia Marques. “O PSD está enraizado e as pessoas projetam o local para o país. A esquerda nunca esteve no poder, não há referência. Também nunca teve oportunidade de mostrar”, admite.

O facto de a esquerda não ter tido ali um líder carismático ajuda a completar a história de Alvaiázere, segundo os relatos dos populares. Mas a mãe de Isabel contesta: “Dar a cara para perder sempre não é fácil. Não devemos desvalorizar as pessoas da oposição, porque sofrem represálias.” Acaba por nos confessar, emocionada, que aos poucos se foi afastando da política, depois de algumas desilusões e do sacrifício da vida familiar. “Da velha guarda do PS todos se afastaram. São muitos anos a lutar sem sermos reconhecidos pela terra.”

Mas nem ela apoia um Governo de esquerda e diz que Passos é “charmoso” e “uma pessoa simples”. “Não quero o PS junto com a esquerda. Se Portugal estivesse estável e nos mercados houvesse confiança… Como é que Costa vai repor as coisas que prometeu sem saber o que lá está?”

Alvaiázere é um dos mais antigos bastiões laranja mas nestas últimas legislativas o PS subiu ligeiramente a votação (de 12,43% em 2011 passou para 16,45%). “Foram os velhos do PSD que morreram”, aponta uma mulher do alto dos seus cabelos brancos.

São 16h00 e os sinos da Igreja, que faz o centro da vila, dobram a finados. “Lá vai mais um. Qualquer dia não há ninguém”, diz-nos um homem de macacão azul escuro manchado de óleos. O filho está emigrado no Canadá, a estudar Medicina. “Um país que não tenha moeda é uma desgraça. Devíamos sair do euro”, afirma. A saída de Portugal da moeda única foi uma das propostas que o PCP incluiu no programa eleitoral que foi a votos a 4 de outubro. Talvez tenhamos encontrado um dos ‘comunistas escondidos’. “Aqui as pessoas vivem com medo. Porque enfiam na cabeça que os comunistas lhes vão tirar o nada que têm. Que é nada! Não têm nada! Como é que têm medo que lhes tirem o nada?” E abana a cabeça e o bigode farto. Também ele prefere não nos dizer o nome.

sonia.cerdeira@sol.pt