Nas palavras do cabeça-de-lista do partido, Carlos Matias, de 64 anos, que fundou o Bloco no concelho onde vive desde sempre, e que foi eleito para o parlamento pelo distrito de Santarém, a subida destas eleições não aconteceu do nada: “Resulta de um trabalho consistente de uma política local, de proximidade, que tem sido desenvolvida desde o 25 de Abril”. Um trabalho de “uma esquerda mais alternativa, diferente do PCP, que foi sendo desenvolvido por vários movimentos como os Ferroviários”, exemplifica. A verdade é que os bloquistas, com Catarina Martins aos comandos, conseguiram em quatro anos praticamente duplicar os seus votos no concelho, passando de 8,96% para 16,23%. O Entroncamento foi mesmo o município onde o Bloco registou a maior subida de todo o país a 4 de outubro.
Ao ‘fenómeno’ não terá sido alheia a viragem à esquerda de todo o eleitorado. Este ano, o PS aumentou a votação em mais de dez pontos percentuais face a 2011, relegando a coligação Portugal à Frente (PaF) para segunda força mais votada, com 27,56%.
A resposta ao fenómeno da estrondosa subida do BE chama-se Catarina Martins. E também ao trabalho local desenvolvido pelo decano Carlos Matias, vereador sem pelouro, que comenta, satisfeito, que “a mensagem do Bloco passou durante a campanha”. “Há precariedade laboral, discriminação salarial – no distrito, em cada três desempregados, dois são mulheres, degradação dos serviços públicos, desertificação”, elenca o responsável. E a questão do acesso à saúde, que será descrita por residentes da capital do concelho mais tarde. “No distrito, há cerca de 80 mil pessoas sem médico de família. Há quatro anos, o Governo prometeu um médico para cada português”, continua a desfiar o agora deputado à Assembleia da República.
‘O povo está cansado’
Andando pelas ruas labirínticas do Entroncamento, percebe-se que esta vitória da esquerda não se resume à confiança no trabalho do BE, nem da sua líder – que transformou o partido de que faz parte na terceira força mais votada nas últimas eleições, baralhando as cartas em São Bento e em Belém.
“A política devia mudar um bocadinho, para não sermos tão sacrificados”. A explicação é de Manuel, dono da cervejaria Heleno, num dos largos com maior afluência da pequena cidade ribatejana onde vivem – ou dormem, como repetirão várias pessoas à Tabu – cerca de 20 mil pessoas: o largo da estação da ‘cidade ferroviária’, como é apresentado o Encostamento no site do município. Todos os caminhos parecem cruzar-se neste largo de pessoas apressadas.
O dono do café onde passam centenas de pessoas diariamente continua: “Há quatro anos que não aumento os preços. Nós, os pequenos comerciantes, temos o HCCP; a medicina e higiene do trabalho, um sem fim de despesas, o IVA que aumentou. Mas não posso aumentar os preços porque as pessoas estão sem posses”. Há “três, quatro anos” que não pode dar-se a esse luxo. Com 22 anos de casa aberta, o comerciante de 65 anos fala sem papas na língua: “No tempo do escudo, vivíamos melhor, todos viviam melhor”.
Há pouca esperança nos partidos do arco da governação na forma como fala. Porque se vota no Bloco? “Porque ajuda o pequeno trabalhador, os reformados, quem precisa”. Entre si e a esposa, recebem, após uma vida de trabalho, 470 euros. “Parece-lhe que chega? Não posso fechar. Mas há muitos comerciantes que fecham portas, que não aguentam. E muitas pessoas sem trabalho. Espero contribuir para a mudança. Para ajudar quem trabalha”. E, no momento, o Bloco – a sua líder, para sermos mais exatos – é o partido mais confiável. “Gosto das ideias da Catarina Martins. A CDU está ultrapassada, não propõe nada de novo. O PS é o partido dos grandes, do doutor Mário Soares e de outros como ele. A seu lado, a mulher, Maria José, concorda com a cabeça. E o sexagenário vai desfiando: “O povo está cansado de ser sempre a mesma coisa coisa. Deixámos de ter a isenção por sermos dadores de sangue; os dois euros que pagávamos para ir ao centro de saúde passaram a cinco. Não há médicos de família”.
O Entroncamento, esse “quando era vila, era uma cidade; quando passou a cidade, transformou-se em aldeia”. Quer isto dizer que “as ruas estão menos limpas, agora os jardins estão cheios de ervas”. Desígnios da austeridade.
A única mais-valia encontrada por Manuel para a cidade onde todos os caminhos do país se cruzam é a Escola Profissional Gustave Eiffel, que “trouxe muita gente jovem”.
Passar ‘um cartão vermelho’
O segundo menor concelho em termos de área do país é local de passagem. Altamente urbanizado, todos parecem ser de outros lugares. À abordagem da Tabu, a resposta ‘não sou de cá’ repete-se uma e outra vez. “Sabe, muitos vão trabalhar para Vila Franca de Xira, outros para Santarém. Só voltam para dormir”, comenta uma transeunte que prefere não ser identificada.
Depois de deambular entre prédios que aparentam ter nascido como cogumelos, sem planeamento urbanístico, regressamos à imponente estação dos caminhos-de-ferro. Fernando, de 59 anos, e Emídio, de 63, trocam impressões, enquanto esperam que cheguem os passageiros dos comboios das 19h à procura de táxi. Emídio assume que não foi às urnas no dia 4 de outubro. “Já em 2011 não fui votar. Só os vejo a brincar à política e o país está como está”.
Fernando, por seu lado, assume logo que votou no BE. Os motivos são simples: “Para tirar do Governo o PS e o PSD. Foi esse o grande objetivo. Se entrasse o BE, estaria um pouco equilibrado, comenta, ainda na ressaca das palavras do PR, que recusou a entrada de partidos anti-euro na governação. O companheiro Emídio acrescenta: “Eles continuam sempre a puxar a brasa à sua sardinha. São 40 anos de democracia e é sempre o mesmo. E eu não sou saudosista do antigo regime, atenção! Fui preso político. Não fui votar porque estaria a violentar-me. E tanto o PS como o PSD merecem um cartão vermelho”.
Fernando passou-o, votando no BE. “Acho que ninguém votou à esquerda porque acreditasse que o BE pudesse ganhar, ser Governo. Mas, com mais votos, podem ter mais poder para intervir”, considera o taxista, explicando que, em 2011, votou no centro-direita. “Sou um social-democrata convicto. Mas eles estão a hipotecar o futuro. Acho inconcebível um país onde há salários de 50 mil euros e salários que não passam dos 400”.
Nesta cidade-dormitório, teme-se que o ‘cartão vermelho’ passado ao Executivo não passe disso mesmo. E poucos parecem acreditar na política ou nas suas repercussões para o seu dia-a-dia. Só não acabou a esperança porque essa é “sempre a última a morrer”, atesta a dona Maria, antes de dizer que “essas coisas da política” não lhe “interessam para nada”.
À hora da despedida, sobre viadutos e acessos labirínticos que cruzam o Entroncamento com destino aos concelhos mais próximos, Torres Novas, as ribeirinhas Golegã, Vila Nova da Barquinha, Constância e Chamusca, veem-se idosos que jogam às cartas e às conversas, trabalhadores com mochilas que carregam sonhos e trabalho em cidades distantes, jovens, pessoas fardadas. A cidade ferroviária prepara-se para dormir, ou para partir. Sendo, também politicamente, num distrito pintado de laranja a 4 de outubro – a PaF venceu com 35,85% dos votos -, um enclave, onde um quinto da população votou no Bloco de Esquerda. Em Catarina Martins, para fazer ainda “alguma diferença”, como conclui Emídio.