Em 2013, Sócrates deu por concluído o primeiro ano dos seus estudos em Paris e tornou-se consultor para a América Latina da multinacional farmacêutica Octapharma. É desde esta época que Dray e Escária terão usado uma vasta rede de contactos acumulados com personalidades estrangeiras para angariar negócios para o ex-governante distribuir entre empresários amigos: além do Grupo Lena e da Octapharma, empresas ligadas a companheiros de outros tempos como Horácio Carvalho (empresário da Covilhã que foi arguido no caso Cova da Beira), António Morais (arguido no mesmo caso e antigo professor de Sócrates) e Nuno Vasconcellos (líder da Ongoing).
A Vítor Escária – que acumulava o lugar de professor no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) com o de consultor de várias empresas, e passara a receber nesse ano uma avença da Proengel, empresa da esfera de Carlos Santos Silva – calhou o dossiê mais duro: Venezuela.
Em 2010, com Sócrates ainda ao leme do país e Hugo Chávez vivo, Escária acompanhou os encontros entre ambos e respetivas comitivas, que culminaram com a adjudicação ao Grupo Lena da construção de milhares de habitações – um dos negócios que o Ministério Público suspeita estar na origem da fortuna acumulada na Suíça em nome do empresário Carlos Santos Silva, mas que serão na realidade o resultado das contrapartidas a Sócrates.
Tentativas falhadas de encontro com Maduro
Em 2013, porém, os trunfos políticos em Portugal tinham mudado de mão e na Venezuela também. Sócrates desdobrava-se em vão para ser recebido pelo novo Presidente, Nicolás Maduro, que passara a ter relações amistosas com o governo de Passos Coelho. Em cima da mesa e de caráter prioritário estavam os pagamentos ao Grupo Lena – em atraso devido à crise e às trancas à saída de divisas – e a abertura de portas junto do ministro da Saúde da Venezuela para se conseguir novos contratos que favorecessem a esfera empresarial de Paulo Lalanda e Castro (o patrão de Sócrates, como este entre amigos gostava de o referir).
Vítor Escária (na foto), nesse ano, andava numa roda viva e mal tinha tempo para o ISEG. As viagens sucediam-se, mas apenas conseguia chegar a figuras de terceira linha, como Temir Porras – político muito influente na época de Chávez, conhecido na imprensa do país como “el lobista del poder”. Porras tem o perfil certo, mas é escorregadio. Como Escária se queixava entre o seu núcleo mais próximo, andava também a tratar da sua vida.
No final do ano, e depois de falhar a vários encontros com Sócrates, o venezuelano que sabia como levar a rega aos seus terrenos anunciou uma deslocação a Portugal para um encontro com empresários com negócios no seu país, a fim de cobrar as ‘rendas’.
Segundo o SOL apurou, em dezembro de 2013 Sócrates encontrou-se finalmente com o chávista no Ritz e, enquanto decorria a conferência, Carlos Santos Silva foi chamado ao local, com o ok para despachar os assuntos do Grupo Lena. O ex-vice-ministro de Chávez não abandonou o país sem receber também Lalanda e Castro, ficando a promessa de um futuro encontro deste com o ministro da Saúde da Venezuela para agilizar os pagamentos dos contratos do país com a Octapharma, que tinha lá empatados 30 milhões de euros em hemoderivados.
O discurso que a Venezuela queria que o ex-PM fizesse
Em 2014, a crise política rebentou na Venezuela. A oposição fez xeque-mate, houve confrontos e a repressão na resposta deteriorou a imagem internacional de Maduro. Em fevereiro, a Sócrates – tal como a outras personalidades europeias – chegou um pedido de apoio ao regime. A ideia inicial, transmitida a Escária através de Temir Porras e de contactos com o embaixador venezuelano em Portugal, era a de recolher depoimentos de vários políticos por toda a Europa para depois passar nas televisões do país. E contavam com Sócrates.
O SOL teve acesso ao documento que estaria para ser gravado por diversas personalidades estrangeiras: “A Venezuela que eu conheço tem um povo nobre, solidário, um povo que valoriza a sua democracia e que defrontou com êxito o titânico desafio de superar a pobreza. Por estas razões, apoio a iniciativa do Presidente Nicolás Maduro de promover a paz e o diálogo e rejeito qualquer forma violenta de agressão que se produza contra a democracia na Venezuela”.
Nesse mês, a imprensa portuguesa noticiou que o PCP manifestava a sua solidariedade com o “regime que promovia a melhoria das condições de vida da população” e que organizações como o Conselho Português para a Paz e a Cooperação “apelavam a todos os democratas o apoio para com o povo venezuelano e as suas importantes conquistas”.
Mas Sócrates, como espalhou pelos mais próximos, considerou a proposta escrita uma saloiada. E mandou transmitir que estava disposto a dar viabilidade à ideia mas com outra ‘narrativa’ e no seu espaço de comentário aos domingos, na RTP1. Isto desde que do outro lado dessem um sinal de boa vontade ao que andava a pedir, num tempo em que os empresários portugueses se queixavam que na Venezuela “eram 100 cães a um osso e havia que dividir o bolo em fatias”.
Conforme o SOL já noticiou, Vítor Escária – um dos 12 peritos escolhidos por António Costa para elaborarem o programa eleitoral do PS – acabou por ser alvo de buscas em março deste ano. Nessa altura, o economista disse ao SOL que apenas fez “contactos com a Presidência de Moçambique”, a pedido de José Sócrates, declinando a sua intervenção em quaisquer diligências que favorecessem o Grupo Lena ou outros.
Mas além disso, os investigadores quiseram esclarecer a intervenção de Escária e Sócrates em diligências efetuadas na Argélia – onde o Grupo Lena tem diversos projetos. Sócrates telefonou, por exemplo, à ex-embaixadora argelina em Lisboa e ao embaixador português na Argélia, para que fosse agendada uma audiência dos administradores do Grupo Lena com o ministro das Obras Públicas do país.
Lula, Soares e o grande encontro da esquerda no 25 de Abril
A operação de buscas a Escária, no início deste ano, estendeu-se em simultâneo ao antigo chefe de gabinete de Sócrates, Guilherme Dray, e à Ongoing.
Enquanto Escária geria a complicada pasta da Venezuela, Guilherme Dray estava mais focado no Brasil, onde passara a trabalhar para a Ongoing, liderada por Nuno Vasconcellos e também com interesses neste país.
As relações de Sócrates com o ex-Presidente Lula da Silva mantinham-se firmes e os pedidos de encontro com o político brasileiro, através de Dray, eram de fácil agendamento. Naquele país, o ex-governante português apenas tinha de olear a máquina dos interesses de Lalanda e Castro, que se circunscreviam a pressões junto do Ministério da Saúde, para encontrar outras soluções para a venda de plasma pela Octapharma.
O estabelecimento de contactos e o agendamento de encontros feito por Dray estendia-se à política. Em 2014, com as medidas de austeridade, sucedem-se em Portugal os protestos de rua e organiza-se uma manifestação para celebrar condignamente os 40 anos do 25 de Abril.
A Fundação Mário Soares e a Fundação Oriente organizaram então uma conferência sobre a Revolução. Soares pretendia trazer a Portugal um leque de políticos europeus da sua área política e aproveitar a oportunidade para preparar um convénio entre várias fundações. Sócrates, que pretendia regressar à vida política em alta, sugeriu-lhe a fundação brasileira de Lula. Rapidamente o programa entre Soares e a fundação liderada por Carlos Monjardino passa a ter outro orientador. Para estar presente, o ex-Presidente do Brasil impunha nomes de outro quadrante ideológico, como o do italiano Massimo D’ Alema.
O SOL soube junto do círculo próximo de Soares que este ‘explodiu’ ao ouvir tal nome: não queria nada com comunistas. No entanto, contra a sua vontade, o plano continuava em marcha e foi Sócrates quem fez o convite ao político italiano. O programa ganhou novos contornos. Competia a D’ Alema, presidente da Fundação Europeia de Estudos Progressista, trazer mais instituições europeias.
Sócrates comprometera-se a financiar o projeto e o triunvirato constituído por Lula, o comunista italiano e o grupo de Sócrates torna-se o mentor de uma ideia que há tempos vinha amadurecendo. Aproveitavam o momento para pô-la em prática: transformar aquela reunião num fórum alargado das esquerdas.
A reunião nunca foi do conhecimento público e tão pouco se sabe se chegou a ocorrer. No entanto, segundo um artigo escrito por Mário Soares no seguimento das comemorações do 25 de Abril, algumas das personalidades festejaram num almoço o sucesso da manifestação que naquela quadra inquietou o governo de Passos Coelho: “À entrada e à saída fui abraçado por tanta gente e beijado por tantas senhoras que tive quase um colapso por efeito de uma grande baixa de tensão. Mas a seguir tive um almoço com o ex-Presidente brasileiro, Lula da Silva, (que viveu no Brasil o 25 de Abril), o jornalista francês Dominique Pouchin (que viveu o 25 de Abril) e ainda o socialista italiano Massimo D’ Alema, José Sócrates e Carlos Monjardino, onde conversámos sobre o 25 de Abril tal como foi visto na Europa e na América Latina”.
Xanana Gusmão em Timor e Manuel Vicente em Angola
Foi através de Dray que Sócrates tentou que o ex-Presidente brasileiro viesse ao Congresso do PS, em novembro de 2014, onde António Costa seria consagrado líder do PS. Mas Lula, que acompanhara a difícil caminhada de Dilma Rousseff na segunda volta das eleições presidenciais, precisava de descanso. Através de Dray, Sócrates propôs uma solução que prometia agradar a todos: estava disposto a financiar uma semana de férias em terras lusas para ele e para a esposa. Em troca, Lula apenas teria de marcar presença no Congresso. Sócrates, porém, seria detido nesse mês e Lula não veio.
As incursões na política nacional não tiravam tempo aos negócios. Dois meses antes deste desenlace, o ex-governante socialista continuava muito ativo, apesar de ter sido avisado de que estava a ser investigado (o que o levou a mudar hábitos e as formas de operar, nomeadamente com as conservas telefónicas).
Guilherme Dray – que desde 2013 passara a receber avenças de duas empresas de Carlos Santos Silva, a XLM e a Proengel – aguçou o engenho para angariar negócios que iam ao encontro das empresas ‘amigas’ noutros mercados. Arranjou então encontros entre Sócrates e o líder timorense Xanana Gusmão e descobriu novos mercados, como Líbia e Equador.
Sócrates, por seu lado, projetava uma lança em África. Esforçara-se em vão para chegar à fala com o Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, e pediu a Dray que virasse as agulhas para o seu vice. O ex-chefe de gabinete, dentro da sua vasta agenda, encontrou a pessoa indicada: em setembro, foi Carlos Costa Pina, ex-secretário de Estado do Tesouro de Sócrates e à época administrador da Galp Energia com contactos privilegiados em Angola, quem forneceu o contacto direto de Manuel Vicente.
Como o SOL já noticiou, Sócrates ligou ao vice-Presidente de Angola, Manuel Vicente, a quem pediu para interceder pelos negócios do Grupo Lena, dizendo-lhe tratar-se de um grupo de pessoas a quem devia atenções. Tentou que Vicente recebesse os administradores do grupo Lena em Luanda, só que o governante estava de viagem marcada daí a dias para Nova Iorque, para a Assembleia-Geral da ONU, a 30 de setembro. Sócrates, que tem sempre um plano B em carteira, lembrou-se que também ele e os amigos tinham por lá afazeres e combinou que agendaria uma reunião através dos embaixadores angolano e português nas Nações Unidas.
Sócrates, que ao contrário do que afirmara a Manuel Vicente não tinha qualquer viagem agendada para aquele destino, ligou então a Santos Silva e trataram rapidamente de marcá-la, para ambos e para Joaquim Barroca Rodrigues.
Numa declaração à SIC, quando ainda estava preso, o ex-primeiro-ministro remeteu essa ajuda ao Grupo Lena para o plano da “diplomacia económica”.: “Acedi ao pedido por mera simpatia e fiz esse contacto com gosto, sem nenhum interesse que não fosse ajudar uma empresa portuguesa, como, aliás, fiz com outras”.
O MP sustenta, porém, que a diplomacia feita a troco de contrapartidas é crime.