Há uns anos, depois de o realizador acumular centenas de horas em frente ao grande ecrã, foi para isso mesmo que o cinema serviu. Em jeito de autoanálise, Salaviza listou uma série de coisas que o impressionavam e lá figuravam, entre outros, Travis Bickle (Robert De Niro, em “Taxi Driver”), Tony Manero (John Travolta, em “Febre de Sábado à Noite”), todas as personagens dos filmes de Abbas Kiarostami, cineasta introduzido pelo seu pai na adolescência e que se tornou o seu realizador vivo preferido.
Foi também na puberdade (essa fase na vida de um rapaz que tanto o fascina) que Salaviza, hoje com 31 anos, se deixou seduzir pelo cinema. E a iniciação não podia ser mais abençoada. O pai, José Edgar Feldman, trabalhava com Paulo Rocha e o cineasta era presença assídua lá de casa. Antes do contacto frequente com Rocha, em criança, Salaviza já tinha acumulado experiências como ator ao participar em filmes como “Coitado do Jorge”, de Jorge Silva Melo, “Quando Troveja”, de Manuel Mozos, “Querença”, do próprio pai. Mas foi “Verdes Anos” que o marcou, até porque era filmado por Rocha nas ruas onde passou a adolescência, no cruzamento da Estados Unidos com a Avenida de Roma.
Aos conhecimentos que colhia no ambiente familiar, juntou mais tarde horas passadas na Cinemateca, «com uma namorada cinéfila», que alternava com idas a salas de centros comerciais com os amigos de liceu. Foi já na Escola de Cinema que deixou de ver filmes com baldes de pipocas ao colo, juntando à devoção por Kiarostami nomes como John Cassavetes, Nicholas Ray, Robert Bresson ou Antonioni. A aprendizagem não o brindou, porém, de sabedoria caseira. Depois de três anos a estudar em Lisboa, foi fora de portas que ganhou consciência da singularidade do cinema nacional.
«Fui estudar para a Argentina porque estava fascinado com o novo cinema argentino [Lucrecia Martel, Lisandro Alonso] e porque em Buenos Aires conseguia viver com muito pouco, ao contrário de Londres ou Paris. Foi o ano mais determinante de todos. Lembro-me de chegar, dizer que era português e ouvir ‘incrível, és do país dos melhores realizadores do mundo’. Referiam-se a Manoel Oliveira, Pedro Costa, João César Monteiro, João Pedro Rodrigues… De repente percebi que os meus colegas conheciam mais cinema português do que eu e que tinha saído de Portugal com uma espécie de orfandade».
Através de amigos brasileiros, argentinos e paraguaios (que conserva até hoje) reconciliou-se «com a ideia de um cinema português contemporâneo» e voltou determinado em conseguir filmar só o que lhe interessa, que é como quem diz «a natureza das pessoas» que convoca para os seus filmes, independentemente de serem ou não atores.
Antes de se afirmar individualmente, ainda trabalhou como assistente de montagem de Manoel Oliveira em “Singularidades de Uma Rapariga Loira”, mas a aceitação da curta-metragem “Arena” (2009) no Festival de Cannes, onde foi premiada com a Palma de Ouro, deu-lhe condições para continuar a perseguir os seus próprios projetos. Três anos depois apresentou “Rafa” (2012) e conquistou nova distinção: o Urso de Ouro no Festival de Berlim.
Agora que se estreia nas longas-metragens, a expetativa é naturalmente grande. Mas Salaviza não se deixa intimidar. «Uma pessoa faz os filmes que consegue. Hoje já é um privilégio chegar ao ponto em que posso decidir se quero, ou não, ligar a câmara. Sei que o tempo e o dinheiro para um filme se baseiam no sucesso do anterior, mas não consigo antecipar a reação das pessoas. É por isso que continuo a ser um puto felicíssimo pela possibilidade de poder fazer um filme».
”Montanha” – cuja estreia mundial aconteceu em setembro no Festival de Veneza -, estreia amanhã, 19 de novembro, mas João Salaviza já está a pensar na próxima longa, no Brasil: um filme com a tribo indígena krahô, passado no estado de Tocantins. O primeiro sem a claustrofobia urbana de Lisboa, essa cidade que apesar de nem sempre parecer luminosa em “Arena”, “Rafa” ou “Montanha” é porto mais do que seguro para o cinema de João Salaviza.
Montanha é, mais uma vez, um filme sobre a adolescência. Depois de Arena e Rafa , o tema não está esgotado?
Montanha não é um filme radicalmente diferente das minhas curtas e ter mudado de formato, para longa, não interferiu no que me interessa filmar. Mas depois de fazer o Rafa, comecei a sentir-me espartilhado pelo tempo e senti que podia ter ficado muito mais tempo a filmar, até porque há uma relação de afeto com quem se está a filmar que só a duração de uma longa permite construir. Percebi que só podia fazer uma ode às angústias da adolescência numa longa e que este processo estava incompleto se tivesse parado nas curtas. Ao mesmo tempo, há uma coisa fascinante para o cinema que é filmar um corpo que se está a transformar diariamente, tanto a nível físico como interior.
E o corpo contar a própria história da personagem…
Sim. É muito interessante filmar um corpo enquanto ele se transforma e não serem apenas as palavras e os diálogos a contar a história de um miúdo. A forma como ele se move e interage com os espaços ganha um peso grande, uma coisa, aliás, que a dança contemporânea tem muito. A Pina Bausch dizia que estava interessada na razão porque as pessoas se movem. No cinema há esta possibilidade, que as outras artes visuais não têm, de os corpos contarem a sua própria história.
Partiu para a escolha de David Mourato, o adolescente que protagoniza o filme, com essa ideia?
Estava à procura de um rosto, em primeiro lugar, onde ainda se sentissem algumas marcas da infância, mas que também já tivesse uma antecipação da maturidade. O David foi um dos primeiros rapazes que vi e não o escolhi logo porque, na altura, ainda era muito miúdo. Lembro-me de pensar ‘que pena, daqui a um ano seria perfeito…’. A verdade é que continuei a ver miúdos e, ao fim de seis meses, o único que me tinha ficado na cabeça era o David. Voltei a vê-lo e, nesse espaço, tinha dado um salto qualquer. Percebi que tínhamos de filmar já porque se esperássemos mais quatro meses ele já ia estar noutra etapa do crescimento.
O que o cativou nele?
O facto de ter ido parar ao casting sem nenhum desejo de fazer um filme, ao contrário dos outros 90% dos miúdos. Hoje em dia passa-se um fenómeno mediático estranhíssimo. De repente, os adolescentes não querem ser atores, querem ser famosos. E o David é precisamente o contrário. Quando o conheci não usava Facebook, escondia-se bastante, foi dos poucos que não me tentou impressionar. Quase como aquela fotografia famosa do James Dean em que ele está com frio e protege-se com a gola do casaco. Há muito a tendência, que se ensina nas escolas de teatro, de que o ator tem de se mostrar, dar-se a conhecer ao mundo. E depois há uma classe de atores muito fina que faz precisamente o contrário, que se esconde nos cantos mais protegidos. O David tem esse mistério.
Interessam-lhe sempre mais as pessoas que não o tentam impressionar?
No outro dia estava a ouvir uma conversa do Kaurismäki, em Espanha, e no meio da conversa houve um ator espanhol que pôs o braço no ar e disse: ‘Adoro o seu trabalho. O que posso fazer para trabalhar num filme seu?’. O Kaurismäki respondeu: ‘Bom, agora já é impossível porque eu jamais trabalho com pessoas que querem trabalhar comigo. Não quero fazer parte de um clube onde me querem, mas sim chegar a um clube que tem a porta fechada e não me deixam entrar’. É um pouco isso. Enquanto realizador gosto desta coisa, muito rara, de os atores apresentarem mais os seus segredos do que propriamente o seu talento. Acho que o meu trabalho enquanto realizador é usar as formas do cinema para chegar à natureza das pessoas que estou a filmar e isto aplica-se aos atores e aos não atores. A Maria João Pinho, por exemplo, está no filme não tanto pelas suas características de atriz, mas mais porque reconheço nela angústias que ecoam naquela mãe. Com o Carloto Cotta passa-se o mesmo. Há uma loucura qualquer no Carloto que reconheço em todas as suas personagens. Escrevi a cena que ele faz no Montanha a pensar nele: é uma cena de afeto, em que é pedido um abraço, e, de repente, transforma-se numa cena quase violenta. O David, que não é ator, foi muito fascinante porque quando o conheci ele estava indiferente a tudo o que se estava a passar à sua volta.
Insinua-se um triângulo amoroso entre três adolescentes: David, o seu amigo Rafa [Rodrigo Perdigão] e a rapariga por quem os dois estão apaixonados, Paulinha [Cheyenne Domingues]. As ‘dores de crescimento’ passam inevitavelmente por uma primeira desilusão amorosa?
Essa promessa de triângulo amoroso foi uma coisa inesperada. Começámos a filmar de uma forma muito convencional, com guião, cena a cena. Na primeira semana de rodagem senti que estava a correr muito mal, tudo me parecia muito artificial e senti que o filme não estava a conseguir dar conta da vida de quem estava a filmar, muito mais incrível do que qualquer coisa que tinha escrito. Na folga da primeira semana de rodagem fui sair e encontrei o David, o Rodrigo e a Cheyenne no Bairro Alto. Os três conheciam-se há umas semanas, estavam na euforia das primeiras saídas à noite, a fazer um filme juntos, e havia ali uma coisa qualquer entre os três. De repente percebi que estava a fazer tudo ao contrário. Devia era estar a filmá-los ali, naquele momento. O cinema estava a impor-se sobre a realidade e o que devia acontecer era o contrário. Na segunda-feira, quando voltámos à rodagem, filmámos uma cena que não existia no guião: eles a voltar de uma saída à noite. A partir daí o filme começou a construir-se em blocos autónomos e o guião é que teve de se ir adaptando ao que ia acontecendo.
Instalou-se o caos ou gosta de trabalhar o imprevisto?
Há sempre o impulso de conseguir ter tudo bastante escrito e pensado antes da rodagem, mas depois o filme vive muito destes conflitos. O cinema provoca a realidade, mas também acredito que a realidade deve questionar a ideia de fazer um filme. Percebi no momento em que os encontrei à noite que o filme ia ser muito mais livre e caótico do que inicialmente imaginava, mas antes disso, quando soube que o David ia ser o protagonista, também foi muito óbvio que o seu olhar e a sua relação com o mundo ia ser matéria do filme. Não podia filmar indiferente às coisas que só ele tem.
Há uma cena – num viaduto em que David fala com Rafa sobre um vizinho que se suicidou – que parece absolutamente real, como se não lhes tivesse sido pedido para representar…
Sim, essa cena foi completamente improvisada, sem grandes indicações da minha parte. Ouvi-os falar dessa história e decidi filmar. Eles estão a contar coisas verdadeiras das suas vidas e acho que um filme também pode servir para que as pessoas contem as suas histórias, não apenas o realizador. Quis trazer essa sensação para o filme e, também, do tempo a passar, porque filmámos durante seis meses, uma eternidade na vida de um adolescente de 14 anos. Se pensarmos na primeira cena do filme – um corpo franzino, de miúdo a acordar, ossudo, imberbe, mais próximo da infância – e a compararmos com a sequência final, quando ele regressa a casa depois de ter passado a noite com a Paulinha, aquele travelling revela outro miúdo.
Montanha termina com David já no fim da adolescência. É um bom pretexto para deixar a adolescência e aventurar-se por outros temas?
Para já sim, também porque há uma coisa que é perigosa: estar muito perto ou muito longe das coisas que se filmam. Tenho o dobro da idade do David, não sou mais velho o suficiente para ser pai dele, mas também já não sou da mesma geração. Isso aplica-se na forma como filmo: nem muito perto, nem muito longe. Gosto de pensar nesta gestão, de qual é a distância certa da câmara? Posso estar com uma câmara dentro de um quarto e filmar os segredos todos de um adolescente ou há um lugar em que as portas se fecham, como os cigarros escondidos no bolso? Na altura do Arena e do Rafa não sentia isso, mas agora questiono-me porque, embora ainda seja novo, também já não ando de skate na rua.
Nem rouba motas como os miúdos do filme…
Não, e se roubasse também não ia dizer numa entrevista [risos]. Mas quando era adolescente roubava as motos das pizzas, nas traseiras da Estados Unidos da América. Fazia essa brincadeira com os meus amigos. Mandávamos vir pizzas, dávamos umas voltinhas com a mota, deixávamos três prédios abaixo e ficávamos a ver a aflição do rapaz quando descia.
Que outras coisas pessoais trouxe para Montanha?
O David vive com o avô num prédio de militares reformados e eu também cresci num edifício do Exército, em que era o único miúdo. O meu avô era coronel, morreu, a minha avó ficou sozinha e eu e os meus pais fomos morar com ela. Cresci no seio de uma família de classe média e também quis que, desta vez, o contexto social tivesse menos peso do que a angústia intrínseca de um adolescente, algo transversal a diferentes culturas, regiões ou classes. Daí, também, ter escondido o país.
E a época. Porque nunca se vê, por exemplo, um miúdo de telemóvel na mão ou com videojogos?
O filme passa-se hoje, mas sim, não há marcas absolutamente evidentes. Isso foi decidido logo à partida. Esta invasão tecnológica mudou mesmo a forma como os adolescentes se relacionam. Eu ainda cresci a jogar futebol na rua, a ir à cabine avisar os meus pais que ia chegar mais tarde. Em relação ao David há ali algumas semelhanças. Não fui um miúdo com problemas na escola, como se vê no filme, mas tinha um lado solitário. Nunca tive, por exemplo, um grupo enorme de amigos e nos filmes tenho esta tendência de ter um protagonista singular. Quando filmo pessoas em grupo acabo sempre por filmar também como é que se individualizam dentro desse grupo. Não é uma coisa programática, mas acabo sempre por filmar manifestações da solidão mesmo em situações sociais. Daí que, na cena em que o David passa a noite com a Paulinha, faço um campo-contracampo, algo que nunca tinha feito antes. Estamos dois minutos com ele e, depois, dois minutos com ela.
Ao contrário do Arena, que é um filme luminoso, Montanha é muito escuro, quase como se fosse a escuridão a revelar as angústias da adolescência.
Há imensas sequências filmadas à noite, mas o que achei mais forte foi perceber que os momentos de maior intimidade, em que a verdade dos miúdos se revela, é precisamente na escuridão. Isto tem muito a ver com esta coisa da adolescência ser um período de mistérios e de segredos, onde o que se quer é esconder-se da luz. Por outro lado, queria que a luz fosse mais de cinema clássico. Daí que muitos dos filmes que vi e que são referências para o Montanha são clássicos americanos, como o Fúria de Viver (1955), do Nicholas Ray – onde também há uma espécie de triângulo entre o James Dean, a Natalie Wood e o Sal Mineo -, ou o Amor e Morte, do [Robert] Bresson. Isto não é um documentário de câmara à mão, com adolescentes a fumar ganzas como são todos os filmes de adolescentes hoje em dia.
Nota-se essa preocupação pelo detalhe de cada plano…
E cada plano é mesmo muito trabalhado. Tenho imensa dificuldade em ligar a câmara se não sentir o que se está a passar. Fazer um filme passa por escrever com imagens, com luz, com sombras… Ter o plateau como um espaço de descoberta.
A parte estética é mais importante que a narrativa, uma vez que nenhum dos seus filmes respeita uma narrativa clássica?
Acho que têm e não têm uma narrativa clássica. Não há uma relação de causa-efeito de uma cena para a outra, mas os planos conseguem existir por si próprios e iluminam (num sentido mais espiritual) as pessoas que filmo. Hoje em dia há muito cinema que vive do discurso que o realizador tem sobre o mundo e está a perder-se o lado do ofício. Fazer um filme também é isto: perceber onde se põe a câmara, esperar pelo sol, trabalhar a luz, decidir se o ator entra pela esquerda ou pela direita. Um filme conta-se pelas coisas que apresenta e não necessariamente por uma história muito bem contada.
É aquela ideia de não dar as cartas todas aos espetadores?
Também há esse lado. Ainda acredito que metade do trabalho é feito pelo espetador. Um filme propõe labirintos internos que cada pessoa escolhe percorrer da maneira que quiser. Idealmente um filme ecoa de forma única em cada pessoa que o vê. Assustam-me sempre os filmes que toda a gente se ri e chora no mesmo momento. É porque o filme propõe uma leitura homogénea do mundo. O cinema não pode oferecer só uma verdade. O cinema propõe coisas, faz perguntas, provoca a realidade. Não pode ser dogmático, nem deve servir para ilustrar uma moral sobre o mundo.