Freitas do Amaral foi discípulo de Marcello Caetano e era considerado na época um homem fiel ao antigo presidente do Conselho. Depois do 25 de Abril, o CDS, liderado por ele, recusou votar a Constituição – sendo, aliás, o único partido a fazê-lo. E no Verão Quente de 1975, acusado de ser de extrema-direita, o CDS viu o seu I Congresso, no Palácio de Cristal, no Porto, ser cercado por esquerdistas, que ameaçavam invadir o recinto.
Freitas do Amaral não tem, pois, boas memórias da extrema-esquerda. Pelo que é estranhíssimo vê-lo hoje no papel de advogado de defesa do Partido Comunista e do próprio Bloco de Esquerda.
Mas essa aproximação não começou agora. Há 16 anos, no 25.º aniversário do 25 de Abril, a Câmara do Porto organizou uma sessão comemorativa da data, que tinha como orador principal Freitas do Amaral e em que eu participava, cabendo-me comentar o seu discurso.
Era natural que Freitas fizesse uma exposição crítica sobre o 25 de Abril, designadamente no que dizia respeito ao comportamento da esquerda no período revolucionário e às derivas esquerdistas de vários setores militares. Qual não é o meu espanto, porém, quando ouço o orador fazer um elogio encomiástico do golpe de Estado, enaltecendo os benefícios que trouxe ao país e omitindo quaisquer reparos à atuação da esquerda.
Tendo-me eu preparado para defender o golpe dos capitães, respondendo aos previsíveis ataques que Freitas do Amaral lhe fosse dirigir, vi-me subitamente na posição contrária: ter de falar de alguns desvios revolucionários que o orador tinha ignorado.
Os papéis invertiam-se: Freitas do Amaral, o perigoso direitista, virava progressista – e eu, que apoiara entusiasticamente a revolução, era agora o conservador.
Assim, antes de comentar o discurso de Freitas, fiz o seguinte introito: «Willy Brandt dizia que as pessoas são revolucionárias aos 20 anos, sociais-democratas aos 40 e conservadoras aos 60. O professor Freitas do Amaral era conservador aos 20, tornou-se social-democrata aos 40 e ainda o verei a colar cartazes nas paredes aos 60».
Pelos vistos, não me enganei muito… Embora na altura jamais imaginasse vê-lo defender a entrada do Partido Comunista no Governo de Portugal.
Recordo, entretanto, que, mal acabei de dizer aquela ‘graça’ sobre Freitas, vi a sua mulher, Maria José, sentada na primeira fila da assistência, a rir a bandeiras despregadas. E percebi que ria com gosto. Percebi que achava piada à ideia de ver o marido tornar-se um revolucionário aos 60 anos.
Por que refiro este pormenor? Porque suspeito que esta ‘deriva esquerdista’ de Freitas do Amaral se deve parcialmente à mulher. Maria José é uma mulher de espírito muito livre – como é possível constatar através dos romances que assina com o pseudónimo de Maria Roma –, e creio que lamentava o facto de o marido ser muito conservador. Aos 35 anos, Freitas vestia-se e comportava-se como um homem de 60. Lembro-me de o entrevistar nessa época e de o ver aparecer com um ar muito formal vestindo um fato completo cinzento príncipe de Gales e uns sapatos de atacadores modelo inglês.
Com estas características, Freitas talvez receasse ser visto progressivamente pela mulher como um ‘homem do passado’. E terá feito um esforço para se afastar de posições conservadoras, aproximando-se da esquerda.
Caso diferente é o de Pacheco Pereira. Ele era um revolucionário aos 20 anos, tornou-se (de facto) social-democrata aos 40, mas voltou a ser revolucionário aos 60. Aqui não se deu uma evolução mas um regresso ao passado, a um certo radicalismo adolescente.
Pacheco Pereira é aquilo a que o meu pai chamava «um literato» (não o dizia em relação a ele, note-se, que aliás tem participado em homenagens ao meu pai, o que muito lhe agradeço). Mas é um homem que viveu sempre metido com os livros, que vê a realidade através dos livros e das teorias. Tem a vantagem de ter acumulado uma vasta bagagem, mas tem a desvantagem de conhecer mal a realidade. Nunca geriu uma empresa, nunca teve um emprego ‘normal’, nunca foi governante – em suma, nunca teve de agir dentro da realidade, de resolver problemas práticos.
Isso leva-o a não perceber, por exemplo, a lógica dos mercados. O problema é que os mercados existem e estão-se nas tintas para ele gostar mais ou menos deles. Veja-se o que aconteceu aos países que tentaram furtar-se a essa lógica: gritaram, espernearam, mas renderam-se. Olhe-se para a Grécia de Tsipras, para não ir mais longe.
Pacheco Pereira é um voluntarista, com tudo o que isso tem de louvável e perigoso. São essas pessoas que empurram os países para aventuras suicidas. Pessoalmente, conheço-o mal. Encontrei-o um dia no comboio, ia eu a caminho do Porto com Maria João Avillez, para uma entrevista com o pintor Henrique Medina (que estava hospedado num hotel da Póvoa do Varzim). Pacheco Pereira veio até junto do nosso banco e ficou na coxia a falar.
Eu e a Maria João tínhamos combinado aproveitar a viagem para preparar a entrevista, mas não foi possível. Pacheco Pereira pôs-se a descrever os pormenores de uma polémica pública entre ele e Eduardo Prado Coelho, crítico literário e militante do PCP, e ficou ali boa parte do tempo do trajeto a falar para nós. Acho que a polémica era relacionada exatamente com o Partido Comunista, que Pacheco Pereira naquela época odiava, e o debate era inflamadíssimo, segundo conseguíamos perceber. Mas como nem eu nem a minha companheira de viagem tínhamos acompanhado o assunto, não percebíamos metade do que Pacheco dizia. Mas ele não arredava pé, apesar do incómodo da sua situação, a ter de se desviar constantemente para dar passagem às pessoas que passavam na coxia.
Prado Coelho e o PCP eram a obsessão de Pacheco Pereira naquela altura.
Ele hoje está noutra: defende – também inflamadamente – a participação do PCP no Governo e a formação de uma frente de esquerda.
Não sei se essa mudança foi influenciada por uma mulher, como julgo que aconteceu com Freitas do Amaral. Mas era bonito se tivesse sido. l