Figueiredo não mexia no salário e pagava contas com ‘luvas’

Até ao ano passado, os salários do antigo presidente do Instituto dos Registos e Notariado (IRN) caíam na sua conta e o dinheiro praticamente não era mexido, acumulando mês após mês valores consideráveis. O que à partida parecia não passar de um pormenor acabou por ser determinante para a investigação ao caso Vistos Gold.

No despacho de acusação, a que o SOL teve acesso, o Ministério Público (MP) sustenta que tal só acontecia porque as despesas mensais de António Figueiredo eram pagas com ‘luvas’ que recebia em numerário. Além disso, referem os investigadores, entre novembro de 2011 e a sua detenção, no final de 2014, o dirigente do IRN conseguiu ainda fazer depósitos que totalizaram 160 mil euros. O dinheiro acumulado era colocado em depósitos a prazo e aplicações financeiras.

‘Poupanças de relevo’

Segundo o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), que dirigiu o inquérito, António Figueiredo ter-se-á aproveitado do cargo, com acesso a informação privilegiada, para conseguir contrapartidas financeiras em negócios do empresário chinês e arguido Zhu Xiaodong (alguns envolvendo a mulher deste, também arguida). Além das portas que abria, o presidente do IRN era uma ‘ponte’ para o então ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, que por diversas vezes terá conseguido contornar os obstáculos que surgiam.

O esquema montado por Figueiredo estendia-se a Angola, onde o MP diz que terá conseguido comissões através de um conluio com o empresário Eliseu Bumba, além de contar com a colaboração em Lisboa de três funcionários do IRN.

“Não tendo desse modo de utilizar os valores que auferia a título de salário, o arguido logrou efetuar poupanças de relevo na conta em que o seu vencimento era depositado, capital esse que, somado às quantias em numerário que ia recebendo, depositando e movimentando por diversas contas bancárias, depois utilizou na constituição de depósitos a prazo e subscrição de produtos financeiros”, refere a acusação.

Para fazer tais aplicações, Figueiredo contava com o seu primo Fernando Pereira, funcionário na agência da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo em Tabuaço.  Fernando acabou por ser também envolvido nesta investigação, sendo acusado de ter aceite fazer parte do esquema de branqueamento: “A partir de agosto de 2014, tomou parte ativa em operações bancárias destinadas a ocultar a proveniência e titularidade das quantias auferidas pelo primo”.

Além do seu vencimento, Figueiredo recebeu, entre 2011 e 2014, em diferentes contas bancárias, depósitos de cerca de 90 mil euros. Noutras contas em que é cotitular com a mulher, os depósitos foram superiores a 70 mil. O ex-presidente do IRN fez ainda depósitos em contas dos pais e da sua filha. Para o MP, o objetivo é claro: “António Figueiredo atuou (…) com o propósito de dissimular tais quantias, evitando que fossem relacionadas com as atividades ilícitas a que se vinha dedicando (…) e também evitar que, desse modo, pudesse vir a ser responsabilizado criminalmente”.

Os negócios em Angola

Além das portas que ia abrindo em Portugal aos negócios de cidadãos chineses, Figueiredo aproveitou a aposta na modernização administrativa do Ministério da Justiça angolano para conseguir novas contrapartidas. Segundo a acusação, para isso foi determinante a proximidade do arguido angolano Eliseu Bumba, secretário do Consulado Geral daquele país em Portugal e empresário com ligações ao Governo de Luanda.

Para desenvolver negócios paralelos aos das suas funções, sobretudo no que respeita a ações de formação em Angola, Figueiredo incentivou três técnicos do IRN, seus subordinados, a constituírem empresas “através das quais celebrariam contratos com as empresas de Eliseu Bumba”. Paulo Eliseu, José Manuel Gonçalves e Paulo Vieira eram também conhecidos de Eliseu Bumba, que os tratava por “três mosqueteiros”.

Para tornar possível essa atividade paralela – que passava sobretudo por ações de formação –, Figueiredo dispensou sempre o setor jurídico do IRN de todos os assuntos relativos à cooperação entre os dois países em matéria de modernização administrativa em que o Instituto estivesse envolvido. Quando aqueles três funcionários quiseram desligar-se oficialmente das funções no IRN e dedicarem-se em exclusivo a estes negócios, Figueiredo recusou todos os pedidos de suspensão de funções. Segundo o MP, temia ficar sem contrapartidas dos negócios caso os técnicos deixassem de estar na sua dependência.

carlos.santos@sol.pt