Mário e Isabel

Vargas Llosa apaixonou-se pelo próprio objeto da sua crítica. Deslumbrou-se com aquilo que ainda há pouco denunciava com crueza.

MÁRIO Vargas Llosa é um escritor peruano vencedor do Nobel da Literatura em 2010. Celebrizou-se como romancista – com livros como Conversa na Catedral ou A Guerra do Fim do Mundo – mas sempre cultivou o ensaio, mantendo uma coluna no jornal El País onde fustigou sem descanso a ‘civilização do espetáculo’.

Em sucessivas crónicas, Vargas Llosa condenou uma cultura de plástico que floresceu na nossa era e que trouxe consigo o primado do efémero, a falta de autenticidade, o sensacionalismo, a mediocridade das programações televisivas, enfim, todo um vazio que se impõe quando o espetáculo substitui as ideias.

Sem tréguas, Llosa combateu este fenómeno. Denunciou os charlatães da cultura, a frivolidade, os males de uma sociedade onde prolifera o falso e o artificial.

TENDO em conta tudo isto, fiquei estupefacto com a notícia de que, à beira dos 80 anos, Mário Vargas Llosa deixou a mulher com quem estivera casado meio século para iniciar uma relação com a socialite Isabel Preysler. É que Preysler, que teve dois casamentos anteriores – com o cantor Júlio Iglésias e com o ex-ministro das Finanças espanhol Miguel Boyer – é exatamente um produto daquela sociedade artificial e frívola que Llosa tanto criticava.

Gostando de viver sob a luz dos holofotes, abusando das operações plásticas para se manter artificialmente jovem, fazendo da imagem a sua mais-valia, Isabel Preysler é um símbolo acabado da civilização do espetáculo.

Llosa apaixonou-se, portanto, pelo próprio objecto da sua crítica. Deslumbrou-se com aquilo que ainda há pouco denunciava com crueza.

NÃO PENSO, entretanto, que Vargas Llosa tenha mudado de opinião. Apenas, nele, o coração sobrepôs-se momentaneamente à razão.

Todos nós, frágeis seres humanos, temos no nosso interior duas forças em permanente conflito: o coração empurra-nos para um lado, a razão puxa-   -nos para outro. E esta luta manifesta-se em tudo o que fazemos.

Quando nos apaixonamos, a razão apaga-se: não queremos ouvi-la nem escutar conselhos. Fazemos o que o coração nos diz. Por isso, a paixão conduz tantas vezes ao abismo. Quantas paixões têm levado à desgraça e mesmo à morte?

Mas atenção: isto não significa que devamos pôr de lado o coração e nos guiemos sempre exclusivamente pela razão – porque isso tornar-nos-ia excessivamente frios, calculistas, desprovidos de emoções.

O ideal é conseguir um equilíbrio entre a emoção e a razão. Mas tal será sempre o mais difícil na vida dos seres humanos.

APARENTEMENTE, durante uma boa parte da vida, enquanto escrevia os ensaios para o El País, sobre a civilização do espetáculo, Vargas Llosa conseguia que no seu interior se impusesse o homem racional, intelectualmente rigoroso. À beira dos 80 anos, porém, este homem foi vencido pelo coração.

Confesso que acho isso bonito. Acho bonita essa disponibilidade para, no ocaso da vida, Vargas Llosa se ter apaixonado por uma mulher que é o próprio paradigma do que sempre criticou. Essa é a prova acabada de que o seu coração não morreu. Que continua bem vivo.

Mas julgo que Llosa vai ser infeliz nesta relação. Porque, quando a paixão esmorecer, quando a razão a pouco e pouco regressar e se impuser, ele começará a ver o que a paixão não o deixava ver. E o regresso à realidade separará inexoravelmente estes dois seres tão diferentes.

Porque a razão, sendo menos arrebatada do que o coração, tem sobre ele uma vantagem: é mais estável, mais persistente, menos dada a variações súbitas.

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