Cavaco até pode ter dito que estudou «todos, todos os cenários» para o pós-legislativas, mas nem o Presidente da República conseguiu adivinhar o que acabou por acontecer depois do dia 4 de outubro. A solução de governação encontrada por António Costa apanhou todos de surpresa.
Na noite das eleições, o discurso de Costa parecia a assunção de uma derrota. O líder do PS assumiu que «não alcançou os objetivos a que se propôs», mas anunciou que não se demitia. Uma coisa era certa: «Ninguém conte connosco para formar uma maioria do contra».
Só que poucos terão percebido que isso se podia traduzir em algo que em mais de 40 anos de democracia nunca tinha acontecido, um governo socialista com o apoio parlamentar de BE, PCP e PEV.
Logo no dia a seguir à contagem dos votos, António Costa começou as conversas à esquerda. Da Soeiro Pereira Gomes, Costa saiu sem certezas, mas com um pré-acordo com Jerónimo de Sousa essencial para perceber que a ideia de um governo de esquerda podia acontecer.
Os dias que se seguiram foram um corrupio de reuniões, sempre com cada um dos partidos da esquerda à vez, ao mesmo tempo que o secretário-geral do PS afastava por completo a porta de entendimento que lhe tinha sido aberta por Passos Coelho. O líder do PSD tinha até elaborado um documento com 23 cedências ao programa socialista, mas Costa achou tudo «manifestamente insuficiente».
Muitas conversas depois, António Costa tinha não um, mas três acordos assinados todos longe dos olhares dos jornalistas por pedido do PCP, que não quis ficar na fotografia ao lado de PS e BE. «O que importa é estarem assinados», garantia Mário Centeno.
Nesse mesmo dia, toda a esquerda se uniu para chumbar o Programa do Governo de Passos e Portas. E teve até uma ajuda inesperada: a do deputado do PAN, que acabou por conseguir depois ver algumas das suas propostas vertidas no Programa do Governo de Costa.
Atacado à direita por ser «uma geringonça», como lhe chamou Paulo Portas, à qual falta a legitimidade política de ser formado pela força que mais votos teve nas urnas, o Governo de Costa foi a surpresa do ano. E deverá continuar a ser, porque não se afigura tarefa fácil conseguir tornar estável um Executivo apoiado por partidos com tantas divergências.
No PSD e no CDS há mesmo quem ache que não passará da aprovação do Orçamento de 2017, que se afigura difícil, tanto mais que será esse ano das autárquicas, eleições em que é notória a rivalidade entre socialistas e comunistas.
Se assim for, o Governo cairá antes do final de 2016. Mas com Costa, como ficou, provado, nunca se sabe. Tudo dependerá das suas capacidades negociais. Para já, é a Pedro Nuno Santos quem cabe fazer a articulação entre os partidos da esquerda.
O trabalho não é fácil, como já se viu esta semana com o Orçamento Retificativo necessário para a resolução do Banif. Foi preciso a abstenção do PSD para o aprovar, porque o PCP e o PEV anunciaram o voto contra e o BE impôs contrapartidas tão difíceis de aceitar que era quase certo o seu voto contra.
Margarida Davim