Sampaio da Nóvoa: do primeiro desgosto amoroso à corrida a Belém

Quando decidiu candidatar-se à Presidência, fez um retiro espiritual para reunir forças e procurar fraquezas. Mas esse momento foi apenas o culminar de uma carreira que começou na Suíça, onde passava 16 horas por dia na biblioteca a estudar, e passou por Paris e Estados Unidos. Sampaio, a quem escrevia os discursos, louva-lhe a “substância”…

Portugal está à beira de se livrar do regime. Pela calada, militares conspiram para o derrubar. Oeiras, onde continuam a viver os pais de António Nóvoa, é um dos eixos das reuniões clandestinas dos que não estão a combater nas colónias. Na casa de Vítor Alves, juntam-se homens como Otelo Saraiva de Carvalho ou Gabriel do Espírito Santo para alinhavar o golpe definitivo contra o Estado Novo.

 Nesse ano, 1973, António vira costas a uma carreira promissora no futebol e, com a bondade própria da juventude, pretende incluir-se na engrenagem que quer libertar o país.

Encontra no teatro palco para a intervenção. Candidatara-se a uma bolsa da Gulbenkian – e, com passado no teatro académico, fica entre os escolhidos. Regressa a Lisboa para frequentar o Conservatório Nacional. Em Coimbra, experimentara a liberdade e não pretende voltar a viver sob a alçada familiar. Está com 18 anos e o dinheiro da bolsa chega para pagar um pequeno apartamento em pleno Bairro Alto, poiso de intelectuais, boémios conspirativos e bufos.

António rebobina: “Não era fácil, ao fim de dois anos, voltar para casa dos meus pais. Dormia lá uma vez por outra, porque nunca tive necessidade de entrar em conflito com eles”.

A moda acompanhava a rebeldia. As raparigas quebram as regras de um país bolorento nos costumes e usam minissaias ou calças como os machos; e os rapazes deixam crescer a guedelha, usam calças à boca-de-sino e põem de parte o espartilho do fato e gravata.

António tem estilo próprio. Tornara-se um jovem bem-parecido, mas era a bagagem intelectual que fazia dele uma personagem hipnótica junto das mulheres. São José Lapa, no mesmo ano do curso superior da Escola de Teatro do Conservatório, tira-lhe a pinta: “Era um tipo alto e bonito, muito ginasticado, sempre maravilhoso, e aparecia de fato de treino com uma risca ao lado que era uma coisa novérrima na época. Todos nós dizíamos: ‘Quem me dera ter um fato de treino daqueles’. Tinha um perfil diferente. Todos nós fumávamos, ele não. O que tinha de fantástico era a cabeça. Nunca o vi nos copos, ao contrário de mim, que era uma boémia. Aliás, foi graças à intervenção dele que não chumbei por faltas. Ele estava à frente da direção da turma, pediu uma reunião com o diretor e lá me safei. Ainda lhe devo essa”.

Este ano, para ele, foi marcado por ruturas. O amor platónico que tivera por uma colega de Coimbra fora substituído por outro, mas este incendiário. Apaixonara-se por Ana Maria, uma catalã de famílias conservadoras, e com ela viajara de mochila às costas pela Europa. A relação, de elevada combustão, consumira-se porém rapidamente. António descobria os espinhos que perseguem os amantes: “Foi uma coisa relativamente curta, aquelas coisas de verão. Não acabou por mim, acabou por ela. Mas é a vida. Sofri pela primeira vez as dores da paixão. Sofre-se imenso”.

No conservatório dominado pelo MRPP

Veiga Simão, ministro da Educação, deixara a ruminar os colegas de Governo ao conseguir aprovar a primeira Lei de Bases da Educação, que começara a burilar desde o início do seu mandato na ‘Primavera Marcelista’ (que entretanto virara estação de chuvas). Com ele, as artes ganham força, os cursos superiores chegam ao Conservatório. O plano ‘subversivo’ do ministro, que exigia um ensino igual para todos, vai de encontro ao pensamento de António, que colocava as convicções acima das doutrinas que se multiplicavam.

 Carlos Fragateiro, seu colega na Escola de Teatro, faz o ponto: “Politicamente situávamo-nos numa zona muito aberta com múltiplas influências, apesar de na altura o Conservatório estar quase nas mãos do MRPP, que era terrível, uma coisa completamente passada”.

Fragateiro gaba a precisão de raciocínio do amigo: “Culturalmente, o António era o melhor de nós. Para mim, há quatro grandes áreas na formação de uma pessoa: a língua, porque sem ela não se pensa, a matemática, porque a abstração dá outra velocidade ao pensamento, a música, por uma questão de sensibilidade, e o desporto, que implica o corpo e dá outra rapidez ao raciocínio. O Ronaldo toma decisões em milésimos de segundos. O António já reunia tudo isso, o que foi ótimo para o que viria a ser a sua grande preocupação: a educação”.

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Os dois tinham percursos semelhantes e beberam no mesmo caldo cultural e político. Fragateiro, com berço numa família de antifascistas do Norte, viera das mesmas fileiras da luta académica, alheio a trelas partidárias. Fazem ambos parte da primeira associação de estudantes do Conservatório. E Fragateiro, que dirige o suplemento juvenil do jornal República, um dos principais jornais da oposição ao regime, convida o colega para colaborador.

De fora, para orientar o curso de Teatro, chega Peter Brook, um dos mais respeitados homens do teatro e cinema. Com a marca de dramaturgos como Bertolt Brecht ou o surrealista e anarquista Antonin Artaud, Brook areja a cátedra. Fragateiro recorda-o: “É Brook quem nos dá a primeira lição no Conservatório e tornou-se uma figura de referência para o Nóvoa. Ele vai transformar o espetador passivo num interveniente no espetáculo. A revolução que ele provoca estende-se mais tarde às escolas do magistério primário, para onde seguiríamos, e que até 1975 nunca sofreram nenhuma reforma”.

Por ali, a cátedra está nas mãos da esquerda. Mário Barradas, um homem do PCP, era o diretor do curso e também deixa o selo em António, que confessa: “Acho que ele e o Brook foram as grandes referências nesta fase da minha vida. O Mário Barradas era, no entanto, a alma daquele curso. Tinha uma conceção do teatro que vinha dos movimentos de descentralização cultural em França”.

O fantasma da guerra colonial

Avesso ao fetiche consumista, o que poupara do ordenado que recebera enquanto jogador da Académica usava para desbravar mundo. Paris, onde a juventude se insurge contra qualquer autoridade, mantém-no ligado à experiência e produção teórica do Maio francês.

 Ainda não fora chamado para a inspeção militar, mas a perspetiva de ir combater para as colónias está excluída do seu mapa de vida: “Era um dilema com que me debatia todos os dias. Não tinha um plano de fuga mas tinha contactos. Algumas idas a Paris tinham servido para isso”.

Por onde passa, escreve aos amigos. Para Carlos Piló, parceiro da Académica, aquelas andanças soam a conspiração. Quase no virar de ano, no Natal de 1973, ele recebe um postal de António: “Sou eu, uma vez mais. Depois de Barcelona, Paris. A seguir não sei, talvez Bruxelas, talvez Genève, talvez Roma. Não importa”.

O novo ano acabaria com o regime de quatro décadas. Um mês antes da revolução de Abril, António dedica-se à recensão literária no República. Em duas páginas, o crítico faz a biografia do expoente máximo do realismo fantástico, Gabriel Garcia Márquez. Com o título ‘A Solidão é o Contrário da Solidariedade’, o escriba constrói o perfil do autor de Cem Anos de Solidão – obra onde, a partir dos seus antepassados, Garcia Márquez ficciona a história latino-americana cheia de guerras, ditaduras e revoluções.

Não esquecera, entretanto, o namoro platónico com a colega de Matemática em Coimbra a quem atribuía a iniciação na literatura latino-americana e dedica-lhe o artigo: “À Paula que, por sua vez, me ensinou quem era Garcia Márquez”.

 No imaginário de Piló, que o conhece das lutas estudantis em Coimbra, a correspondência que dele vai recebendo dos vários cantos do mundo leva-a a imaginá-lo como um encartado revolucionário. A 3 de Abril de 1974, o acaso dita um encontro imprevisto. Numa quarta-feira, Piló encontra-o no tabuleiro da ponte de Santa Clara, em Coimbra: “Vinha de Paris, via Barcelona. Eu desconfiava que já estivesse ligado à LUAR [criada por Palma Inácio em Paris, na década de 60]. Ele ia jantar com o Aires Viriato, um anarquista dos tempos da república de estudantes que era o nosso ‘professor’ de política e convida-me. E ao jantar diz-nos: ‘Isto está quase a mudar’. E como vinha de Paris, onde estava a malta toda – o Cunhal, o Soares, o Palma Inácio -, pensei que tinha informações que nós não tínhamos”.

Mas António desfaz o mito: “Estive a jantar com os dois. Aliás, o Aires era quem me fazia a barba na república em Coimbra. Mas eu não tinha nenhum conhecimento privilegiado sobre o 25 de Abril. Podem dizer que fui um dos conspiradores e adorava ter isso no meu currículo, mas infelizmente é falso”.

O 25 de Abril

Doze dias depois deste encontro, os militares estão na rua. A revolução traz esperança a um país de precários recursos. Na véspera, António dormira em casa dos pais. É Saladina, a mãe, quem pelas sete da manhã lhe dá a notícia. Põe-se num pulo em Lisboa, onde os capitães encurralam o Governo e a polícia política.

No trajeto, espalha a boa nova. Manuel Lisboa, amigo dos tempos de Coimbra, está agora no Técnico ligado ao movimento estudantil. Apaixonara-se pela única irmã de António, com quem viria a casar, e estreitam mais os laços: “Ele passou pela nossa casa, tocou à campainha mas nós não acordámos. Então atirou umas pedras à janela e disse: ‘Passa-se alguma coisa em Lisboa’. Depois, durante uns dias não o vi”.

Chegara o momento de viver o presente e transformar-se no ator do futuro que ambicionara: “Andei na rua sem saber muito bem o que nos estava a acontecer mas a fazer de conta que sabia. Nem sei onde dormi durante dias”. Com a queda do regime, festeja-se a saída dos cárceres dos presos políticos e regressam os exilados. Entre muitos, Álvaro Cunhal e Mário Soares.

No grupo, vem Hermínio da Palma Inácio, o líder da LUAR, revolucionário de aura romântica que azucrinara Salazar. A desfaçatez do ‘Che Guevara lusitano’, que assaltara uma agência do Banco de Portugal sem dar um tiro e planeara uma ação de guerrilha urbana na Covilhã (onde acabaria por ser, mais uma vez, preso), produzia entre os estudantes uma atração magnética.

 A LUAR, que reunia várias tendências ideológicas, pretende deitar abaixo a ditadura sem procurar prebendas do poder – e ia de encontro à cultura anti-hierárquica e heterodoxa de António. Que, no entanto, não se compromete na militância: “Nunca estive organizado na LUAR. Quem me aproximou deles foi Zeca Afonso, de quem me tornei amigo. Tinha simpatia pelo movimento e participei em muitas atividades com pessoas de Coimbra ligadas ao advogado Soveral Martins, e em Setúbal ou no Alentejo com o Zeca. Só estive com o Palma uma vez”.

Camilo Mortágua – participante no assalto ao paquete Santa Maria e um dos fundadores da LUAR – ainda se recorda de António: “Aparece como um jovem líder que tinha um grupinho de amigos de Oeiras que queriam aderir à LUAR. Marquei-o logo, porque muitos dos que apareciam estavam numa ‘de luta armada’ e achavam que tínhamos armas. Ele não! Queria discutir os problemas de fundo, os valores, os problemas ideológicos. Um dia, com os reacionários a levantarem a cabeça e ele só a querer grandes discussões teóricas, disse-lhe: ‘É pá, tu emerdas-me!’”.

O casamento

O país vibrava. E em plena convulsão revolucionária António apaixona-se de novo. Lénia Seabra Real, filha de um diplomata, fora sua companheira de infância em Oeiras mas a carreira do pai levara-a a correr mundo. Depois de terminar o liceu em Bordéus, regressara a Portugal para tirar o curso universitário.

Nesse verão, António apanha um dos irmãos a falar ao telefone com a rapariga. Lembranças antigas vêm-lhe à memória e mete-se na conversa: “Combinamos encontrar-nos para tomar um café e houve logo um clique”. O namoro correrá quente em pleno PREC.

As forças conservadoras dão sinais de resistência, nada está garantido. Civis e militares, para reforçar a posição do então Presidente da República António de Spínola, organizam uma manifestação para 28 de Setembro. Ninguém dorme na véspera. O casal engrossa as barricadas populares formadas em torno dos acessos a Lisboa, a vasculhar armamento nas viaturas que circulam em direção à capital. No dia seguinte, sem ir à cama, dentro de um Mini, montando vigilância depois do falhanço da ‘reação’, recordam o plano montado pelos dois em surdina. Pouco passava das oito da matina quando Lénia se lembra: “Não te esqueças que casamos dentro de umas horas”.

Apenas uma amiga de Lénia, dos tempos de Bordéus, está a par da cerimónia. Vão a casa de Manuel Lisboa: “Perguntam-me se tenho B.I. e se não me importo de ser testemunha”. Com o amigo de sempre e Françoise Frustey, a 30 de Setembro, pelas 15h30, dão o nó num cartório em Oeiras.

De seguida, seguem para casa dos pais de António onde a mãe, católica de regras, não entende o desvario: “Ó meu filho, o que queres dizer? Deixa-me sentar”. António já escolhia as palavras de forma cirúrgica: “Agora já está!”.

Colaboração com a luar

Os tempos não permitem lua-de-mel. Os partidos, agora na legalidade, contam espingardas na corrida ao poder. Na LUAR, digladiam-se duas correntes. De um lado, Palma Inácio – que, mercê de velhas amizades tecidas na prisão, se quer unir ao Partido Socialista; do outro, Camilo Mortágua, o ideólogo do grupo, que recorda: “Havia também a linha maoista, os cowboys que queriam uma arma para andar aos tiros e fazer a revolução. Eu considerava que a LUAR, como escola primária da política, não queria nada com o poder mas sim formar os portugueses que durante 40 anos viveram sob a ditadura. O António estava deste lado”.

 Perto das bases, no coração do poder popular e já com uma certeza política que o tempo não mudaria, António ganha uma perspetiva global: a ignorância humana é o grande obstáculo à transformação da sociedade. Manuel Lisboa, imbuído da mesma motivação, enquadra-o: “Ajudar as pessoas a terem consciência, e demonstrar-lhes que podiam tomar conta do seu próprio destino, era o que nos motivava a participar nesses movimentos de base, nas comissões de moradores, associações. Estávamos muito marcados pelo que tinha acontecido no Chile com Pinochet, e a ideia era justamente agir junto das camadas populares, ajudando-as a organizarem-se para resistir a um contragolpe”.

No braço cultural da LUAR estão homens como Zeca Afonso e Francisco Fanhais. Este último, que agora faz parte do núcleo de apoiantes de António para a Presidência, revela-lhe a composição: “Ele, a Lénia e o Manuel Lisboa cruzavam-se comigo frequentemente na sede, mas eram simpatizantes do movimento, não eram militantes. Eu e o Zeca fazíamos parte do grupo de cantores que acompanhava as campanhas, iniciativas e comícios da LUAR, a cantar”.

Entre os amigos de Oeiras, a opinião era outra. David Justino, das barricadas do MES, explica: “Para mim, ele era o líder do núcleo de Oeiras da LUAR, pelo menos era com ele que eu falava quando era necessário unir forças”.

Luís Mácara, que com ele faz pendant político, revela nomes de código do período revolucionário: “Sabia que era da LUAR, mas comigo nunca esteve, devia andar por Lisboa. Mas um dia ele e a Lénia apareceram-me todos pomposos, ele de fato e gravata, ela de colar de pérolas da avó a acentuar a sua gravidade. Parece que iam alugar uma quinta para ‘recuo’ de alguém. E como nome de guerra usavam o do casal Castro Rego”.

Talvez António fosse demasiado novo para as causas que abraçava, e nele os outros imaginassem maiores atributos revolucionários. António dá a sua explicação: “Esse episódio veio de um sketch que representámos no teatro em Madorna. E os nossos amigos brincavam com isso, como se nós fôssemos as personagens da peça”.

O 25 Novembro chega como um entreato onde se fechava o pano da revolução. António desmonta o passado: “Para mim foi um choque, mas depois lembro-me das declarações de Melo Antunes que trouxeram a pacificação à sociedade portuguesa”.

Mas não enfaixa de imediato a desilusão. Nas eleições autárquicas de 1976, António encabeça uma lista de cidadãos independentes. Vive agora na Parede, numa casa de um avô da mulher, um produtor de vinhos da Bairrada, e à sua volta reúne a esquerda que com o 25 de Novembro perdera o combate. Sem ser dotado para cedências, mantém-se fora da lógica partidária, torna-se o mandatário do grupo nas eleições para a junta de freguesia da Parede: “Era a primeira vez que se votava para partidos, e as pessoas tinham necessidade, como hoje, de saber em quem estavam a votar. Tivemos mais assinaturas do que votos”.