Carlos Fragateiro lança-lhe um convite que lhe ditaria o destino: “Telefonei-lhe a perguntar se queria dar aulas de formação aos professores daquele ciclo. Ele sempre foi rápido a decidir e aceitou”.
Dois anos depois do 25 de Abril, António está em Aveiro a dar aulas de Movimento e Drama a professores do Magistério Primário. Apanha o arranque da reforma curricular de Sérgio Niza, que lança as bases do Movimento Escola Moderna. O progressismo areja os currículos académicos e António, com Carlos Fragateiro, que dava aulas na Universidade de Aveiro, colaboram com Niza na redação dos programas do ensino primário que passa a prever as expressões dramáticas: “Acabaria por fazer o programa de Movimento e Drama e lidera as equipas que estão nas escolas superiores a estruturar de uma forma consequente os programas e a acompanhar as negociações”.
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A figura de António não passa despercebida por aquelas bandas. De farta guedelha, socas nos pés e mochila ao ombro, aguça a curiosidade. Idália Chaves, professora de ginástica que com ele partilha a mesma sala de aula, o ginásio, saca a imagem: “Ele era interessantíssimo, novo, vestia à época. Nada clássico. Usava socas. Uma colega minha contava com imensa graça que ele lhe tinha pedido as dela emprestadas”.
Um espírito conciliador
Na Escola do Magistério, entre os mais conservadores, lavrava o alarme. O fogo trazido pela revolução ainda arde em várias frentes. Edgar Panão, o diretor, torna-se um alvo a abater. Era a época dos saneamentos e estava na lista dos mais extremistas. Mas António mantinha compromissos com as pessoas mais do que com as ideologias. Começava a revelar a sua natureza aberta a consensos. O diretor presta-lhe hoje homenagem: “Era uma pessoa que existia, sabia-se que existia mas não agredia. Tinha aquele jeito de falar que ainda hoje conserva. Quando se põe na pose de afirmar, fá-lo cheio de convicção”.
Com os alunos do Magistério Primário leva à cena a peça Mãe Coragem, de Bertolt Brecht. Idália acompanha-o e fala da plateia: “A palavra-chave de Sampaio da Nóvoa era dar vez e voz aos alunos. E depois, ao longo da sua carreira, deu também vez e voz aos professores”.
O apelo do teatro mantém-se e, com alunos, funda o Grupo de Teatro Experimental da Universidade de Aveiro. Em 1980, encena a sua primeira peça: um trabalho coletivo que resulta do confronto direto dos alunos com as armadilhas da realidade. Uma espécie de manifesto abjecionista, centrado no aviltamento pessoal e social.
No dia da estreia que abre em sucesso, António, resumia a peça: “É a procura dos sinais da experiência deste planeta miserável. Círculo fechado, viciado, urgente quebrar pela dinâmica de estar aqui e agora”. Rui Sérgio, um dos atores – hoje diretor do Teatro da Trindade -, analisa-o: “O Nóvoa vem consolidar a necessidade de extravasar uma série de coisas, inclusivamente questões políticas. Ele criou um espaço criativo e dava-nos deixas para discutirmos o que queríamos, sem ser diretivo”.
Os ensaios nem sempre correm pelo melhor. O regime autoritário fora deposto mas a reviravolta dos costumes demora. A peça desenvolvia-se em cinco sketches, e um deles esteve para ser eliminado. Uma das alunas fazia o papel de prostituta, e o namorado, após assistir a um ensaio, proibiu-a de participar. E Isabel Leitão autocensura-se numa cena de strip-tease.
Rui Sérgio interpreta a época: “A Isabel Leitão só desbloqueou num fim de semana que fomos ensaiar para casa de uma colega nossa, e a Zinda manteve-se no papel, mas na semiclandestinidade”.
Tinha havido mudanças no Conservatório, que passa a exigir mais um ano para a conclusão da licenciatura. António consegue-a, apresentando o seu último trabalho a um júri que integra Jorge Listopad e Glória de Matos.
Aos fins-de-semana está na Parede com Lénia, que terminara a licenciatura em Direito e começara a trabalhar como jornalista na RTP. Às vezes, o pequeno apartamento fica à pinha. Um dia, António arrasta consigo os nove colegas do teatro. O cinema americano está na moda mas não chegara a Aveiro. Em grupo, vê Kramer Contra Kramer, de Robert Benton, e no regresso acampam no chão.
Na parede, pendurado, o tríptico de Hieronymus Bosh, O Jardim das Delícias, lança-os em elucubrações noturnas. António desafia os outros a tomar opções entre o Céu, a Terra e o Inferno. Sérgio seleciona as respostas: “Todos responderam Purgatório, exceto a Zinda, que escolheu o Céu, e foi a primeira a casar”. O dono da casa sucumbira há muito às ideias claras e está com a maioria: “Terra, claro. Faz-nos aterrar. Eu não sou de devaneios, sou um homem da Terra”.
Rumo à Suíça
Com 25 anos dá uma guinada no seu trajeto. Tornara-se imprevisível e pretende abocanhar o mundo. Dividido entre a arte e a educação, vence a última. Num velho Fiat, ruma à Suíça onde se inscrevera em Ciências da Educação na Universidade de Genebra: “Em Aveiro, senti o clique: percebo que tenho de fazer uma formação na área da pedagogia, das ciências da educação. Sempre com uma componente histórica, que foi muito forte em tudo o que eu fiz, em tudo o que eu escrevi”.
Com a sua bagagem curricular e profissional, queima etapas. Os responsáveis do curso propõem-lhe um diploma de estudos avançados em vez da licenciatura. Sem vícios peculiares que o distraiam, e em jejum de discussão política, mergulha nos estudos de forma pragmática.
Dois anos depois, em 1982, termina a licenciatura em Ciências da Educação no pódio de melhor aluno do curso. O futuro passava por regressar a Portugal, mas Pierre Furter convida-o para ser seu assistente, enquanto a Universidade lhe oferece uma bolsa de doutoramento. Regressa a Oeiras a ponderar na proposta, até que decide aceitar: “Foi uma fase absolutamente estruturante e decisiva do ponto de vista académico e intelectual”. Volta à Suíça, desta vez acompanhado. Lénia acabara de fazer um estágio na Comissão Europeia, em Bruxelas, e decide retomar os estudos também em Genebra.
O casal aluga um estúdio ao português Carlos Castro Almeida, que fica no primeiro andar de um prédio, rodeado de gente da academia, mesmo ao lado da casa do senhorio, com quem cimenta amizade.
António divide-se entre professor e estudante. Dá aulas em Gestão das Organizações Educativas e Gestão dos Sistemas de Formação na Europa, e está inscrito no doutoramento em Ciências da Educação. Quando não está na universidade, encharca-se de literatura ou escreve na biblioteca universitária, no Parque dos Bastiões, que passa a ser uma segunda casa: “A imagem que guardo de Genebra é, de facto, a biblioteca. Passava lá 16 horas por dia. Saía às 2 da madrugada e regressava manhã cedo”.
António começa a projetar-se. É incluído em organismos que pensam e estruturam a própria universidade. Aí participa em processos de decisão e amplia contactos que lhe serão úteis mais tarde. Foi o caso do seu senhorio, Castro Almeida, que ali se exilara na década de sessenta, e que, com António Barreto, José Medeiros Ferreira e Eurico Figueiredo, integrava a turma que ficará conhecida como ‘Grupo de Genebra’. A face mais visível deste quarteto de opositores ao Estado Novo espelhara-se na Polémica, a revista que entrava em Portugal com a ajuda de amigos suíços e portugueses, sobretudo gente ligada ao MES e à LUAR: “O Nóvoa sabia que tínhamos feito a revista e acho que apreciou esse facto. Quando lançámos a Polémica considerámos que era importante aprofundar a análise da situação portuguesa. Não só falar da oposição mas também aprofundar a situação política em Portugal. E isso interessava-o”, recorda Castro Almeida.