Amor que mata

Os crimes passionais são violentos, primários, têm algo de teatral, o assassino não quer esconder nada, pelo contrário, parece querer mostrar a tragédia. E muitas vezes mata-se a seguir.

Com uma cadência alucinante, sucedem-se os crimes passionais. Eu sei que muita gente não gosta do termo, por achar que não se mata por amor. Sobre isto, aliás, mantive uma (civilizada) troca de argumentos com Inês Pedrosa. Mas eu acho que sim: que se mata por amor. Um amor doentio, perturbado, que se transforma em raiva – mas amor.

Ao longo do ano passado, 29 mulheres foram mortas pelos maridos, companheiros ou namorados; em geral, por elas os quererem deixar. Em Portugal, uma mulher é morta de 12 em 12 dias. Isto sem contar com os inúmeros casos de espancamento, ameaças, tortura psicológica, etc. Trata-se de um problema que tem de ser rapidamente encarado como um flagelo social – exigindo um tratamento mais drástico do que aquele que tem vindo a ser aplicado. Em quase todos os crimes passionais fica a ideia de que se podia ter feito mais para os evitar.

Recordo que na entronização de António Costa como líder do PS foi mostrado um vídeo onde apareciam mulheres mortas pelos companheiros. Mas o empenhamento do novo líder ficou-se por aí: pelo vídeo de propaganda. Pelo efeito mediático. Nunca mais ouvi falar do assunto.

Alguns crimes passionais atingem uma violência extrema. Como aquele, ocorrido quase no dobrar do ano, em que um homem, depois de balear com cinco tiros a mulher que o queria deixar, a desfez com uma granada. O que leva um ser humano a cometer tamanha atrocidade?

Psicólogos dizem que na base dos crimes passionais está uma questão de poder. De sentimento de posse. Eu julgo que é mais complexo. Haverá nesses crimes três sentimentos envolvidos. Primeiro, uma reação contra quem nos rejeitou. Ninguém gosta de ser rejeitado, seja em que situação for. E quem ama com muita intensidade muito menos aceita a rejeição. Em segundo lugar, o orgulho ferido do macho: se uma mulher troca um homem por outro, é porque o outro é melhor – mais rico, mais bonito ou mais ‘homem’. E ninguém gosta de ser trocado. Em terceiro lugar, a ideia de que a vida sem a outra pessoa perde o sentido.

O sentimento de rejeição leva o homem a agredir a mulher que o rejeitou. O orgulho do macho leva-o a eliminar quem o trocou por outro: se não és para mim, não serás para ninguém. Finalmente, a ideia de que não pode viver sem a outra pessoa leva o amante ao suicídio. De facto, grande parte dos crimes passionais termina em suicídio.

Ocrime passional é um dos crimes de morte mais comuns. Mata-se muito por amor. Fora isso, há os crimes por dinheiro e os crimes associados às questões de propriedade.

No século XIX e no início do século XX os jornais noticiavam com frequência assassínios ligados às questões da água. Indivíduos que roubavam água aos vizinhos, desviando os ribeiros para regarem as suas terras, acabavam mortos (muitas vezes à sacholada). As lutas pela posse da terra também conduziam com frequência a desfechos fatais.

Quanto aos crimes por dinheiro, sem contar com os roubos, há o episódio clássico das mulheres (ou dos maridos) que matam os cônjuges para se apropriarem da sua fortuna. Mas nestes crimes por dinheiro não há sentimentos amorosos envolvidos. E por isso são mais elaborados, mais calculistas. Às vezes recorrem ao envenenamento. O objetivo é sempre perpetrar o crime perfeito. Forjam-se previamente álibis, escondem-se provas.

Nos crimes passionais nada disto sucede. Os crimes passionais são violentos, primários, têm algo de teatral, o assassino não quer esconder nada, pelo contrário, parece querer mostrar a todos a tragédia. Depois de matar, em geral não foge nem se esconde. E muitas vezes mata-se a seguir.

O criminoso passional mata por amor e morre por amor. O objetivo é os dois desaparecerem em simultâneo do mundo dos vivos. É tudo acabar ali.

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