Tarkovski por inteiro

Bergman considerava-o «o melhor». O Espaço Nimas exibe todas as obras de Andrei Tarkovski, realizador soviético conhecido pelo perfecionismo obsessivo. São apenas 12 filmes, mas 12 filmes muito bons.

Tarkovski por inteiro

Conta-se que certo dia Andrei Tarkovski pediu a uma mulher que lhe lançasse as cartas para revelar o futuro e ela lhe disse que faria apenas sete filmes em toda a sua vida. Apenas sete? ‘Vão ser sete. Mas vão ser sete muito bons’, terá sido a resposta.

Não foram sete, foram 12, contando com as primeiras curtas e O Rolo Compressor e o Violinista, que fez ainda enquanto estudante, antes de em 1962 se ter apresentado em Veneza com a sua primeira longa metragem, A Infância de Ivan, que lhe deu um Leão de Ouro e o lançou para o filme seguinte, Andrei Rubliov (1966), proibido na União Soviética até aos anos 70 e exibido no último dia do Festival de Cannes às quatro da manhã, não fossem dar-lhe um prémio – que de qualquer modo acabou por receber.

Estava tudo a alinhar-se para que a profecia se cumprisse. E cumpriu. Nascido na Rússia em 1932, filho do poeta Arseniy Tarkovski, Andrei não precisou de muitos filmes para se tornar o cineasta mais relevante do cinema soviético depois de Eisenstein. Uma obra que a partir da próxima semana está em exibição no Espaço Nimas, numa retrospetiva integral da obra do realizador soviético, que inclui alguns filmes que nunca tinham sido exibidos no circuito comercial português, como é o caso de O Rolo Compressor e O Violino. «Tarkovski é um dos maiores cineastas, sempre nos interessou, e conseguimos agora reunir a obra toda dele», diz o programador, António Costa.

«Todos os filmes dele estão ao mesmo nível, em qualidade e em intensidade», considera Alberto Ruiz de Samaniego, docente de Estética na Universidade de Vigo, escritor e apaixonado pela obra do realizador, que em 2011 comissariou a exposição Luz Instantânea – Fotografias, Itinerários e Saudades de Andrei Tarkovski, no CCB. «É possivelmente o cineasta mais reconhecido mundialmente dos últimos 40 anos e é um realizador com muita influência em realizadores mais jovens, creio que pelo caráter tremendamente autêntico que têm as suas imagens».

O realizador costumava dizer que toda a vida tinha andado a fazer o mesmo filme, sobre o homem em busca de um ideal. Samaniego vê a sua obra em duas partes, representada por dois filmes essenciais: O Espelho (1975), na sua vertente mais «intimista, sonhadora, carregada de nostalgia e melancolia», a que se podem juntar os últimos filmes, Nostalgia e O Sacrifício; e Stalker (1979), um filme de ficção científica, «uma distopia em torno de um território de contaminação», que, com Solaris ou Andrei Rubliov, surge numa outra linha de «caráter mais filosófico, simbólico, mesmo político».

Um perfecionismo enlouquecido

Sobre Stalker há muito que contar. A versão que conhecemos é completamente diferente da primeira, tudo porque Tarkovski decidiu filmá-lo inteiro uma segunda vez, depois de um problema na revelação da película. «É um formalista extremo, cuida todos os detalhes de uma maneira extrema, a ponto de ser capaz de repetir um filme inteiro ou de realizar sequências uma atrás da outra, repetidas, até chegar ao que queria». Daí que «além da carga de autenticidade, as imagens de Tarkovski sejam também de uma perceção formal extraordinária».

Sobre isso nada melhor do que recordar outra história, essa de certeza verdadeira, ocorrida durante as filmagens de Nostalgia, o primeiro filme que faz fora da União Soviética, em Itália, para o qual constrói o interior de uma casa de família, em tamanho real. No final, com tudo filmado, decide que afinal é preciso mudar a casa toda meio metro e voltar a filmar. «O plano não resultava», alegou.

«Era um cineasta de um perfecionismo enlouquecido. O que o diferencia de outros realizadores muito formais, como Kubrick, por exemplo, é o caráter tremendamente afetivo da sua obra, que afeta o espectador». Aí já a transportar-nos para um universo bergmaniano – o cineasta sueco é, aliás, uma das suas referências, a par de Robert Bresson, «realizador muito focado num cinema de caráter transcendente, que é outro traço importante de Tarkovski, não num sentido estritamente religioso». Mas vamos ao que disse Bergman: «Para mim, Tarkovski é o melhor. Inventou uma nova linguagem, fiel à natureza do cinema, que captura a vida como um reflexo, a vida como um sonho».

claudia.sobral@sol.pt