José de Guimarães. “As coisas que eu produzo não são muito cómodas”

A roupa preta preta é uma imagem de marca tal como é a cor no seu trabalho. Pode parecer um paradoxo. Mas não é. Obra e artista dependem um do outro, mas não são o mesmo. E se a obra, para José de Guimarães, é dominada pela cor, o mesmo não se pode dizer do seu…

Chama ao seu ateliê de fábrica?

Sim. Os ateliês dos artistas são oficinas, são sítios onde sujamos, onde há tintas, madeiras, ferro. Há as coisas mais inesperadas. São oficinas onde os artistas materializam ideias, muitas de difícil execução, razão pela qual a maior parte dos objectos que resultam do processo criativo também são inesperados. Os artistas começam a pensar numa coisa mas depois a própria obra leva-nos para caminhos que não tínhamos imaginado.

Isso acontece-lhe frequentemente?

Sim. É normal. Quando penso realizar uma peça, à medida que o trabalho vai sendo desenvolvido, aparecem as indecisões, o inesperado e, muitas vezes, é preciso voltar atrás.

Como se a obra tomasse conta do processo?

É isso. À medida que a obra se vai desenvolvendo, em determinado momento, o artista reflecte em relação aquilo que já fez. Isto é: começamos a trabalhar e depois há um momento de pausa. E, de repente, o artista chega à conclusão que afinal não é aquele o caminho. Embora normalmente faça pequenos esboços, são apenas uns pedaços de papel. E, para os materializar, temos de encontrar soluções que, muitas vezes, nos aparecem pela primeira vez. Razão pela qual as obras de arte são sempre coisas inesperadas e obrigam o autor a caminhos que ele próprio nunca tinha explorado.

É-lhe muito difícil dar uma obra por terminada.? Existe a ideia do artista sempre insatisfeito.

É difícil, porque, quando se está em cima da obra, dia e noite, durante uma semana, um mês, o que for, temos os olhos cheios daquilo, temos os olhos viciados. Por conseguinte, o artista precisa de ter um tempo de reflexão sobre aquilo que está a produzir e, de repente, após essa reflexão percebemos que afinal não íamos no bom caminho e que é preciso voltar atrás.

Isso é causador de angústia?

Sem dúvida. O artista sente-se incapaz, acha que perdeu qualidades.

Depara-se muitas vezes com esse sentimento de incapacidade?

Em 2001 ou 2002 fiz uma série de exposições grandes e importantes aqui em Portugal, nomeadamente uma retrospetiva em Serralves. Fartei-me de trabalhar e, em determinada altura, senti-me esgotado. Tive a sensação que não conseguia produzir mais e fui viajar. Fui ao México, onde nunca tinha ido, e o vazio que sentia foi preenchido de uma forma exuberante com tudo o que pude ver e ler no México. Quando regressei comecei a desenvolver a série México que trabalhei durante uns seis anos. Este fenómeno que existe de indecisão, de incapacidade, de me sentir esvaído de ideias, é frequente. A não ser que as pessoas não tenham consciência, penso que acontece com todos. A produção artística não é uma produção de massa, são peças individuais, peças que refletem – pelo menos para mim – o momento que se vive ou um momento histórico. É como um romancista que escreve diariamente. Ele preenche o romance de personagens e décors e conta a sua história. Os artistas plásticos também contam uma história.

Foi por se sentir vazio de ideias que não expunha em Lisboa desde 2008?

Não. Neste intervalo fiz muitas exposições fora.

Então estava chateado com Lisboa?

Não era oportuno, não calhou… Acho que as pessoas têm de ir mostrando as suas coisas no mundo todo, se possível. E este período até foi bastante importante, não foi um período sabático. Foi um período de investigação sobre novas coisas, nomeadamente dois temas que foram importantes para o meu trabalho: os Negreiros e Guaranis e o Ritual da Serpente.

Como lhe surgiram esses temas?

Os Negreiros e Guaranis nasceram depois de uma viagem ao Brasil. Todo o encontro que tive com aquela zona da Bahia foi a justificação de todo um trabalho em torno das coisas antropológicas, nomeadamente das peças africanas, onde o fenómeno da escravatura é relevante. Fechou-se o ciclo: a África que eu conheci acabou por se transformar na África que eu não conhecia e que está no Brasil. Razão porque, não só surgiram os negreiros, como surgiram os guaranis, que são índios brasileiros. Esse fenómeno onde a mestiçagem é evidente permitiu-me desenvolver um tema que expus parcialmente no Algarve. Mas neste período tive também um longo trabalho de diálogo com o Nuno Faria, um jovem critico de arte com quem tenho trabalhado, a propósito do nascimento do Centro Internacional das Artes que tem o meu nome, em Guimarães, e que foi inaugurado em 2012. Foi um longo trabalho de meditação e discussão para pormos de pé uma espécie de museu mundo, uma espécie de atlas da cultura, muito inspirado nas teses do famoso filosofo alemão, Aby Warburg. Para ele, a cultura é um puzzle onde nem a espécie nem a época têm qualquer importância. Isto é: posso ter ao lado de uma peça pre-histórica, uma obra de arte contemporânea.

A temática do ritual da serpente nasce nesta sequência?

Sim, foi justamente por ter lido bastante sobre o Warburg. O ritual da serpente é um ritual realizado pelos índios Hopi, do Arizona, que ele conheceu no fim do século XVIII, princípio do século XIX. Esse ritual invoca os bons ofícios dos deuses para que as colheitas resultem. Nas vésperas das colheitas, os índios vão pelos campos, recolhem as serpentes vivas, guardam-nas em casa, e, no dia das colheitas, dançam com as serpentes com a cabeça agarrada pela boca. E depois soltam-nas pelos campos. Curiosamente, nas civilizações ditas mais evoluídas, como nos autodenominamos, também temos muitos rituais, alguns extremamente pagãos. Simplesmente são disfarçados.

Por constrangimentos impostos pela religião católica dominante?

Exatamente. Nas culturas mais genuínas africanas, os rituais continuam a ser a base de funcionamento das sociedades. É todo este fenómeno antropológico que tem dominado os meus últimos anos.

E que está presente nesta exposição?

Mais ou menos. Esta exposição teve como ponto de partida a coleção de obras da minha autoria que o banco possui e que inclui um bom conjunto de tapeçarias da série camoniana. Mas tivemos de envolver esse conjunto de obras com outras obras, umas mais antigas, outras mais recentes. As obras do banco desenvolvem-se no piso intermédio, e no primeiro e terceiro piso temos estas outras obras. Há um quê de antológico nesta exposição. Vai desde 1973 até hoje. E o lado do culto funerário é dominante nesta exposição. Há peças da série Negreiros e Guaranis e também do Ritual da Serpente, o que faz com que esta exposição seja também uma homenagem ao Warburg, que chegou a ser internado e considerado demente e, justamente para provar que não era demente, escreveu o livro “O Ritual da Serpente”.

Essa incompreensão em relação aos artistas e aos pensadores, ainda se sente nos tempos que correm?

É recorrente.

Já se sentiu incompreendido?

Sim, claro. Estas coisas que eu produzo não são muito cómodas, nem visualmente nem para ter em casa, não condizem com o sofá da sala. Já viu o que é ter isto em casa? [pergunta, enquanto aponta para uma caixa enorme e colorida, cheia de néons] Estas coisas são obras que se produzem sem finalidade, é a obra em si.

A arte não tem de ter finalidade.

Pois, mas seria interessante que, pelo menos, os museus, o Estado, adquirissem estas obras. Coisa que não faz. Há países onde estas coisas que faço são menos rejeitáveis. Tenho colecionadores das minhas obras em Espanha, na Alemanha, em França… Meios onde é mais fácil ser aceite, onde as peças não causam um impacto negativo ou de desconfiança. Muitas vezes as pessoas olham para as minhas peças com desconfiança.

Sente que esteve sempre do lado dos artistas que suscitam mais anticorpos?

Acho que sim. O que me dá um certo prazer. É certo que isso também tem consequências negativas, mas ou o artista apresenta trabalho provocatório ou não vale a pena. Na história, os artistas provocatórios demoram mais tempo a ser compreendidos. Muitas vezes, quando o são, já não estão cá para assistir.

O seu trabalho mais polémico foi a escultura que fez para a rotunda da Praça 25 de Abril?

É sempre muito complicado executar uma obra de arte pública. Primeiro porque há imensos intervenientes. Uma obra que fica num espaço público, o dono é uma entidade publica, normalmente a câmara, e o problema não é só a execução, mas o pagamento da obra. Normalmente as entidades oficiais não têm meios nos seus orçamentos para esse tipo de trabalho. Essa escultura foi muito cara de executar. Era impensável ser paga com dinheiro do erário público. Seria um escândalo.

À data, o presidente da Câmara de Lisboa era o agora ministro da cultura, João Soares.

Exacto. Foi ele que conseguiu que dois ou três mecenas pagassem a construção da obra, que não custou nada ao Estado. Só que demorou sete anos entre o projecto e a conclusão. Há sempre muita discussão para se aprovar uma peça pública. Mas não é só em Portugal. Fiz uma grande escultura em Tenerife e a cena repetiu-se.

Quando algo se arrasta durante tanto tempo faz com que, quando finalmente a obra está concluída, já está imune às opiniões dos outros?

O gostar depende do olhar. O tempo é que diz se as peças permanecem. É o tempo que faz o juízo da arte. E o olhar educa-se. Por isso a educação pela arte é fundamental desde a infância.

Como vê a nomeação de João Soares para o cargo de ministro da cultura?

Conheço-o desde que foi presidente da câmara de Lisboa e tenho uma grande estima por ele, acho que fez um bom trabalho no sector das artes, enquanto esteve na câmara. É uma pessoa sensível e aberta. Tenho fé e esperança na atuação dele. Acho que ele mostrou que tinha ideias, e fez coisas. Por exemplo, quando foi o incêndio na câmara municipal, aquilo foi muito bem recuperado, com a colaboração de vários artistas plásticos contemporâneos – e eu estou à vontade para falar porque não fui convidado a participar.

Falou da importância da educação pela arte. Mas que educação pela arte podia ter um miúdo em Guimarães, em 1939, o ano em que nasceu?

Absolutamente nenhuma. Fiz quatro anos de escola primária, mais cinco anos de liceu em Guimarães. A única disciplina ligada à arte que tive foram aulas de desenho nas quais 50% era desenho geométrico e os outros 50% eram desenho livre. Mas tive a felicidade e a sorte de ter tido um professor muito competente que me abriu os olhos. Ele reconheceu em mim qualidades. Mas não havia mais nada.

O país da altura era muito diferente, ainda mais em Guimarães…

Era um país fechado, medieval… Para se fazer uma viagem de Lisboa a Guimarães eram 12 horas de comboio. Não havia nada. Mesmo em Lisboa, o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian só foi inaugurado em 1983. Quando vim para Lisboa, o único sítio onde iam fazendo algumas coisas, algumas boas, era o Secretariado Nacional de Informação, no Palácio Foz. Lembro-me que a primeira exposição que vi foi lá, do Amadeo de Souza Cardoso.

Quando veio para Lisboa passou a sentir mais de perto o regime?

Quando vim para Lisboa, tinha 17 anos, tive a oportunidade de contactar, através da sociedade cooperativa de gravadores portugueses, com um meio artístico importante, com artistas como o Pomar, o Almada Negreiros, o Sá Nogueira. Foi aí que abri mais os olhos para as coisas das artes. De resto vivia, estudava, andava entre a escola do exército, o Técnico e a sociedade de gravadores. Vivíamos nesse meio. O regime não me era muito evidente. E quando tive possibilidade de ter passaporte, aos 18 anos, comecei a viajar. Fui para Paris, Itália, Alemanha. Queria ir ver museus.

Como é que o miúdo de Guimarães, sem acesso a nada, tinha tanta certeza que se queria movimentar no mundo das artes?

Eu próprio me faço essa pergunta. Mas a verdade é que, em Guimarães, as coisas que eu frequentava, já não eram as que os meus colegas frequentavam. Eu ia ao único museu que tínhamos, o Museu Alberto Sampaio, de arte religiosa, e tinha longas conversas com a diretora do museu. E frequentava a Sociedade Martins Sarmento, que é uma sociedade de arqueólogos. Esse era o meu mundo, ao contrário dos meus amigos que iam jogar à bola.

Nunca jogava?

Sou fã do Vitória de Guimarães, mas não dedicava o meu tempo a essas atividades. Entretanto comecei, eu próprio, a fazer as minhas escavações. A cidade de Guimarães era rodeada de campos e montanhas onde havia vestígios da presença romana.

Em sua casa como é que a sua queda para as artes era entendida?

A família quase se viu obrigada a aceitar porque continuei sempre a estudar. Mesmo quando vim para Lisboa, vim frequentar um curso que tinha uma duração de sete anos, engenharia civil. Durante esses sete anos ia para a universidade
e nos tempos livres ia para a sociedade de gravadores. Quando acabei o curso já tinha um certo currículo como pintor.

Nessa altura foi para África, para o serviço militar. Foi uma experiência fundamental para si?

Sim. Quando fui já tinha uma boa bagagem como artista, mas esta ida revelou-se fundamental. De repente encontrei-me noutra zona do mundo, cujos parâmetros culturais não tinham nada a ver com o meu modo de vida europeu, o que criou em mim um misto de angústia e curiosidade. Comecei a tentar descobrir esse mistério através das manifestações artísticas dos africanos. Tive possibilidade de conhecer pessoas bastante importantes do ponto de vista de cultura, nomeadamente missionários e antropólogos, e fui começando a descobrir em África uma riqueza de novos conceitos que se opunham radicalmente às práticas que se desenvolviam nos países europeus. E tentei compreendê-los e introduzi-os na minha própria linguagem artística. Sou europeu mas nas minhas produções passou a haver uma osmose entre a Europa e África.

Como é que se conjuga o serviço militar com essa descoberta artística?

Depende da força de cada um. Eu nunca andei aos tiros no mato, era engenheiro de telecomunicações. Em Angola a guerra estava muito localizada. E eu estava em Luanda, que era uma cidade grande, onde havia um meio cultural muito desenvolvido.

Não pôs a hipótese de não regressar a Portugal?

A partir de 1995 instalei-me em Paris. Não com carácter permanente, mas tenho lá casa, tenho lá um ateliê e passo lá longos períodos. Estou sempre dentro e fora de Portugal. Aqui acontecem poucas coisas. A maior parte das obras que produzo não as vendo em Portugal. O número de compradores de arte portuguesa em Portugal é residual. Além disto, hoje em dia, o mercado de arte é protagonizado por uma vintena de galerias internacionais, que são simultaneamente poderosas instituições financeiras. Infelizmente, hoje em dia, as obras
de arte são vistas como um produto financeiro.
O romantismo nas artes acabou. Impera a ganância do lucro, com preços irrealistas, exorbitantes. Hoje é mais fácil comprar um Botticelli do que comprar um artista contemporâneo. E isto não faz sentido.

Mas o seu trabalho já esteve muito bem cotado no mercado internacional…

Não quero entrar muito por aí. Mas sim, tenho tido obras que se vendem fora, na Christies e noutras leiloeiras. Curiosamente muitas das obras que aparecem no mercado são obras que foram vendidas em países como a Bélgica, onde tive uma permanência grande e onde agora estão a aparecer algumas para venda. Mas este processo não passa pelo artista. Muitas vezes só sei quando a obra já foi vendida. Por vezes até gostava de comprar algumas das minhas peças, mas não posso. Guardo pouca coisa minha, o indispensável. Muitas vezes acabo por ficar com as obras que não vendi, mas que são as melhores.

A sua colecção pessoal tem mais peças de arte africana do que peças suas?

Sim, eu vivo daquilo que vendo. As peças que colecciono têm vida. São manifestações artísticas de determinadas culturas, determinadas tribos, representam os antepassados, têm utilidade em rituais como se fossem objectos religiosos. Vou recorrentemente às salas onde as guardo e olho para elas com olhos de ver.

O artista que é o coleccionador de peças de arte africana, nunca se esquece de regressar à portugalidade e à história do nosso país?

Nunca. Tenho seguido muito a história portuguesa, a história dos nossos antepassados. Tenho uma grande admiração pelos navegadores portugueses, era um povo que cada vez que se metia rumo à Índia sabia que muitos deles morreriam. Ainda assim desafiavam tudo e todos e iam.

Continua a regressar muitas vezes a Guimarães, cidade onde nasceu e que lhe deu o nome?

Não tanto como desejava, mas vou.

Porque foi importante tomar esse nome?

Não sei se há uma relação explícita, mas há uma razão implícita. Acho que o desenrolar da vida de uma pessoa está na sua origem, a sua origem marca todo o processo subsequente. Uma pessoa dá voltas, mas regressa sempre às origens. Renegar as origens é um disparate. Por tudo isto optei por trazer as origens sempre no meu nome.

Há pouco referiu que o culto funerário estava a dominar uma boa parte do seu trabalho actual. Aborda-se esta temática de forma diferente quando já se passou os 70 anos?

A experiência de vida diz-nos que é importante essa recordação. Uma pessoa madura tem na mente coisas que se passaram com os seus familiares que já não estão presentes. Há um fechar do ciclo onde tudo se passou, onde as memórias continuam a existir. E mais, há um reavivar da memória, um passar em revista. Há coisas de que me lembro hoje, que foram importantes, que aqui há uns anos não me lembrava. 

raquel.carrilho@sol.pt