O quociente familiar, a hiper progressividade do IRS e as famílias

    

A atual tributação sobre o rendimento das famílias caracteriza-se por uma hiper progressividade, pela qual a taxa marginal máxima de 48% de IRS é aplicável a rendimentos muito baixos (80 mil euros anuais) quando comparados com outros sistemas fiscais. Mas a esta tributação há ainda que somar a sobretaxa (que se mantém nos 3,5% para rendimentos anuais superiores aos mesmos 80 mil euros), bem como a taxa adicional de solidariedade (TAS), com valores de 2,5% para rendimentos anuais entre 80 mil e 250 mil euros e de 5% para rendimentos superiores.

Assim, a tributação marginal máxima é de 48% se não se tiver em consideração as tributações extraordinárias e temporárias. Mas contando com estas (sobretaxa e TAS), a taxa marginal máxima agregada atinge, então, impensáveis 54%para rendimentos acima de 80 mil euros e 56,5% para rendimentos acima de 250 mil euros.

O problema é que esse montante é, como referido, histórica e internacionalmente elevado, mas também insustentável. Lembremo-nos que Lisboa está cheia de exilados fiscais franceses e, porém, a taxa marginal máxima agregada em França é de (apenas) 49% e (só) surge para rendimentos acima de 500 mil euros (sendo de 45% para rendimentos entre, aproximadamente, 152 mil e 250 mil euros e de 48% para rendimentos entre 250 mil e 500 mil euros). Claro que a esta tributação sobre o rendimento há que, em França, adicionar ainda a tributação do património, com taxas entre 0,5% e 1,5% para patrimónios líquidos superiores 1.300 mil euros, com incidência, nesse caso, desde os 800 mil euros. Mas o exemplo é elucidativo: a nossa tributação sobre o rendimento é confiscatória, entrava o empreendedorismo e a mobilidade social e fomenta a emigração fiscal.

E a hiper progressividade também se ilustra com facilidade. Um solteiro com um dependente e um rendimento mensal (numa base de 14 salários) de 1000 euros, terá uma dívida de IRS de 950,46 Euros. Se a sua remuneração tiver um aumento de 50%, para 1500 euros, a dívida de imposto triplica, passando a 2.945,43 euros. E se o seu rendimento duplicar, situando-se nos 2000 mensais, então o seu IRS mais do que quintuplica, ascendendo a 5.263,12 euros.

É precisamente neste contexto que se menciona a necessidade de reforçar a progressividade do IRS. E essa necessidade é absolutamente real! Mas não no sentido de aumentar, ainda mais, a tributação sobre rendimentos relativamente modestos, mas antes no sentido de aumentar o intervalo entre os escalões, de modo a que as taxas marginais mais elevadas se apliquem a rendimentos superiores aos atuais. Hoje, num total de cinco escalões de IRS, o terceiro escalão, com taxa de 37%, é aplicável a rendimentos anuais acima de 20 mil euros, o que é absolutamente chocante. Trata-se de uma taxa quase milionária sobre rendimentos, quase, de entrada na classe média.

Ou seja, o IRS está concentradíssimo nos rendimentos da classe média, em especial salários, honorários e pensões. Mas, se assim é, faz sentido substituir o quociente familiar (divisão adicional de 0,3 por cada descendente ou ascendente a cargo) um ano depois de introduzido, com os limites individual e global de, respetivamente, 300 euros e 2.000 euros (e com limites intermédios dependendo da composição do agregado familiar), com o argumento, precisamente, de ser necessário aumentar a progressividade do imposto? Os números acima demonstram que a resposta é absolutamente negativa, pois essa alteração vai precisamente reforçar a progressividade do IRS no sentido de penalizar rendimentos ainda relativamente baixos (o impacto é sempre negativo para contribuintes com filhos e rendimentos acima de 16 mil euros anuais, caso se desconsidere a redução da sobretaxa).

E essa redução tem de ser retirada da análise da bondade da remoção do quociente familiar, que é uma medida estrutural e permanente, enquanto aquela tributação é extraordinária e temporária. E o certo é que abstraindo da redução da sobretaxa e considerando apenas o efeito (permanente) na “fatura” do IRS, as simulações demonstram que, dependendo do número de dependentes, a alteração é neutra para rendimentos situados num intervalo entre os 12 e os 16 mil euros anuais (ver anexos), tornando-se perniciosa para rendimentos acima desse patamar. 
Assim, o efeito apenas é positivo até àquele intervalo (haverá menos IRS a pagar), mas é negativo para rendimentos acima desses valores, pois o IRS devido sobe. Do que decorre que o aumento da progressividade do IRS não corresponde ao desejável efeito de tornar mais lento o seu incremento em função do aumento do rendimento. Pelo contrário, ao incremento deste passa a corresponder um aumento proporcionalmente ainda maior do IRS, para remunerações com níveis ainda relativamente modestos (aproximadamente, 900 a 1.140 euros mensais, numa base de 14 pagamentos e dependendo do número de dependentes).

Em conclusão, há pois que aumentar a progressividade do imposto, por oposição a um IRS que está demasiadamente achatado nos seus escalões, mas a eliminação do quociente familiar é negativa para essa correção, além de ser prejudicial para um problema fundamental: o da taxa de natalidade.

*Líder do departamento fiscal da PwC