Descendente de Joaquim Pedro Oliveira Martins – político do século XIX, historiador e um dos Vencidos da Vida -, Guilherme d’Oliveira Martins tem um curriculum extenso. Já foi secretário de Estado, ministro de três pastas diferentes, presidente do Tribunal de Contas.
Desde 2003, preside ao Centro Nacional de Cultura (CNC), cargo que abandonará em março deste ano, depois de em novembro de 2015 ter sido nomeado administrador da Fundação Calouste Gulbenkian.
Pai de três filhos e avô de nove netos, recebe-nos no Ciber-Chiado para uma conversa a propósito do livro Liberdade da Cultura: Preparar o 25 de Abril (ed. Gradiva/ CNC), que reúne contributos de personalidades como João Bénard da Costa, José Medeiros Ferreira, Pacheco Pereira e Nuno Teotónio Pereira, além do texto do próprio entrevistado. Apesar de o espaço contar com rede Wi-Fi, Guilherme d’Oliveira Martins prefere métodos mais convencionais.
Ao sentar-se, abre à sua frente um caderno escolar de argolas com apontamentos, que de resto não precisa de consultar durante a entrevista, pois a sua memória revela-se sempre fiável e certeira.
Começaria por lhe fazer uma pergunta relativa ao seu nome. D’Oliveira, escrito com apóstrofo, tem um sabor quase oitocentista.
É exatamente o nome do meu bisavô, sem tirar nem pôr. O meu bisavô era médico, professor da Escola Médica e sempre se identificou assim. O meu tio-bisavô, Joaquim Pedro Oliveira Martins, que era o irmão dele, não usava sequer o ‘de’, usava J. P. Oliveira Martins.
O seu tio-bisavô deixou uma obra muito extensa. Leu-a toda?
Posso dizer que conheço razoavelmente toda a sua obra, que é muito, muito extensa, como diz, e impressionante, sobretudo porque foi escrita por um homem que morreu com apenas 49 anos.
E que ainda desempenhou uma série de funções.
Sim, entre as quais a de ministro da Fazenda, mas não só. Foi deputado, diretor das minas de Santa Eufémia em Espanha, diretor do caminho-de-ferro do Porto à Póvoa do Varzim, diretor da régie dos tabacos. Nunca viveu exclusivamente da vida literária.
Tem um grande respeito pela memória dos antepassados?
Exatamente. Essa noção é para mim extraordinariamente importante. A relação através das gerações é extremamente enriquecedora. Uma sociedade que não tem memória é uma sociedade decadente, que tende a empobrecer-se. Também nesta casa faço questão de invocar a memória de pessoas que me antecederam, como Sophia de Melo Breyner ou Helena Vaz da Silva.
Ainda tem o retrato de Sousa Franco no seu gabinete?
Sim, no meu gabinete da Fundação Calouste Gulbenkian está lá a fotografia do meu mestre e amigo Professor Sousa Franco.
Além de ter o nome do seu bisavô, também tem um filho que se chama Guilherme. É uma tradição familiar?
A palavra tradição é uma palavra muitas vezes mal entendida, porque é entendida como se fosse algo de estático.
Como estagnação?
Exato. A palavra latina traditio significa transmissão. Muitas vezes usamos a palavra revolutio como contraponto, mas traditio é uma palavra, por definição, dinâmica, enquanto revolutio é uma palavra de regresso. Não estou a pôr em causa a evolução semântica das palavras. Todos sabemos que a palavra revolução na cultura ocidental tem um sentido próprio: é a revolução inglesa, de 1688, a revolução americana, de 1776, e a revolução francesa de 1789.
Este livro fala de outra revolução, a portuguesa.
E por isso se chama Liberdade da Cultura: Preparar o 25 de Abril. Nele falamos da experiência d’O Tempo e o Modo e do Congresso para a Liberdade da Cultura, que abre novos horizontes. A revista O Tempo e o Modo é lançada na Livraria Morais, de António Alçada Baptista – estamos aliás rodeados das estantes da Livraria Morais -, em janeiro de 1963. Alçada Baptista é alguém vindo do movimento que ele gostava que se designasse por católicos inconformistas. Era impensável antes de 1963 que a crítica literária se debruçasse, como se debruçou, sobre autores como Agustina Bessa-Luís ou Herberto Helder. No caso de Agustina Bessa-Luís houve debates extraordinariamente acesos. Hoje, à distância, vê-se que esse caminho era a preparação para a democracia. A democracia faz-se a discutir os problemas, independentemente de eles serem cómodos ou incómodos.
Uma das figuras centrais desse movimento é o intelectual francês Pierre Emmanuel. Por que se interessou ele pela situação portuguesa?
Pierre Emmanuel considera que é indispensável que em Portugal e em Espanha haja um conjunto de personalidades que contribuam para a democratização. A comissão espanhola do Congresso para a Liberdade da Cultura antecede de alguns anos a comissão portuguesa e Pierre Emanuel achava que não fazia sentido que houvesse uma comissão em Espanha e não existisse em Portugal. Falou com António Alçada Baptista e criou-se uma empatia que levou a que o CNC se tenha tornado o lugar natural de acolhimento da oposição moderada espanhola. Recentemente, na sessão de lançamento deste livro, Roselyne Chenu revelou uma carta enviada pela embaixada de Espanha ao ministro da Informação, Manuel Fraga Iribarne, dizendo: ‘O CNC é uma instituição extremamente perigosa porque acolhe pessoas como Jesus Aguirre’. Devo explicar que Jesus Aguirre era um clérigo de Madrid e mais tarde veio a ser nem mais nem menos do que Duque de Alba consorte. Calcular-se-á que a sua perigosidade não seria outra que não a defesa da liberdade.
Há outros episódios curiosos desse período?
Sim. Quando Nuno Teotónio Pereira distribui o Direito à Informação e o Boletim Anti-colonial [folhetos contra o Regime], a PIDE faz uma rusga aqui ao centro, e não descobre nada. Por uma premonição, Francisco Sousa Tavares tinha escondido todos esses papéis dentro do congelador do frigorífico, e a imaginação da Polícia não foi até ao congelador. Um dia perguntaram a Francisco Sousa Tavares: ‘Onde estão os arquivos do centro?’. E o Francisco respondeu: ‘Meu caro amigo, os arquivos do Centro, fomo-los mandando para o lixo por uma razão simples: se caíssem nas mãos da Polícia Política…’.
… eram comprometedores. De resto, a sede da PIDE ficava aqui na Rua António Maria Cardoso, não é verdade?
António Alçada Baptista foi a vítima primeira disso, uma vez que a sua fortuna pessoal foi toda empenhada nesta iniciativa da revista O Tempo e O Modo e da Livraria Morais. E metade das páginas submetidas à censura foram proibidas. Metade! Estamos a falar de 6 mil em 12 mil páginas.
Dada a sua ligação à oposição, com a conquista da democracia a missão do CNC tem de se redefinir?
Redefiniu-se, graças à grande inteligência de Helena Vaz da Silva. Helena Vaz da Silva abriu horizontes, tornou a defesa do património material e imaterial numa noção ampla. E os passeios de domingo – uma ideia de um texto de José Régio, ‘Davam grandes passeios ao domingo’ – constituíram-se num emblema do centro. Simultaneamente, há um projeto que já leva 30 anos – ‘Os Portugueses ao Encontro da sua História’. Já fizemos várias voltas ao mundo e fomos ao encontro de tudo o que é presença portuguesa. Ainda há uns meses estivemos no Myanmar, antiga Birmânia, onde mercenários e mercadores portugueses tiveram a sua influência.
Costuma participar nessas viagens?
Sim, tenho participado.
Qual foi o local mais remoto onde encontrou vestígios da presença portuguesa?
Houve muitos casos mas devo invocar um porque fez a pergunta e eu tenho de responder: o Japão. Devo dizer que é absolutamente comovente a ligação que existe entre o Japão e Portugal. Os portugueses sabem mais de Portugal do que nós sabemos do Japão e essa assimetria deve ser corrigida. Não podemos esquecer que na linguagem comum os japoneses usam 250 vocábulos de origem portuguesa.
[Toca o sino da Basílica dos Mártires]
Neste momento estamos a ouvir o sino da aldeia de Fernando Pessoa [alusão ao poema Ó Sino da Minha Aldeia]. Fernando Pessoa nasceu aqui em frente, no Largo de São Carlos.
Gostaria de falar um pouco sobre o seu percurso e ligação à cultura. Imagino que tenha nascido no meio dos livros.
Literalmente. Nasci em casa do meu avô numa biblioteca, porque me apressei. Vivi sempre muito ligado aos livros e tive a grande vantagem de conhecer figuras fundamentais da cultura portuguesa. Fui nomeado administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian e naturalmente é uma zona na qual me sinto bastante à vontade. Ao falar de cultura falo sempre de um triângulo: educação, ciência e cultura. A cultura não é uma cereja no cimo de um bolo, não é uma flor de botoeira. Por isso desconfio sempre dos programas políticos que têm lá um capitulozinho no fim sobre a cultura. A cultura tem de estar presente em todos os capítulos, da primeira à última linha de qualquer programa político.
Estudou no Liceu Pedro Nunes. Chegou a ser aluno de Rómulo de Carvalho?
Não fui aluno de Rómulo de Carvalho mas trabalhei com ele. Fui colega de Nuno Crato, de quem sou muito amigo, e participámos no que designámos Clube de Física, que tinha como mentor Rómulo de Carvalho.
Pode falar-me um pouco dele?
Era extremamente rigoroso e exigente mas também extraordinariamente humano. A experiência era para ele algo de fundamental, e tinha o seu quê – o próprio Rómulo de Carvalho o disse – de encenação teatral.
No bom sentido?
No bom sentido. Uma experiência que o professor Rómulo de Carvalho ia fazer perante os seus alunos era profundamente treinada para que o gesto e o resultado fossem absolutamente impecáveis. A preocupação fundamental era suscitar o interesse pela ciência pela experiência. O saber de experiências feito, que é a base fundamental da nossa cultura – não nos esquecemos de Duarte Pacheco Pereira nem de Camões, que ao descrever a figura do Velho do Restelo diz que esse velho de aspeto venerando tinha o saber todo de experiências feito.
Por vezes achamo-lo uma figura antipática, retrógrada, um desmancha-prazeres.
Não. O Velho do Restelo é o sentido crítico. Nunca pode faltar.
O seu tio-bisavô, de quem já falámos, era um homem polémico, ao contrário de si, que parece mais conciliador. Nunca se irrita, nunca perde as estribeiras?
Tento ser sereno e ponderar as situações.
Quando os filhos eram pequenos, não o tiravam do sério?
Isso certamente.
É verdade que ensinou os seus filhos a ler e a escrever?
É verdade. Inspirei-me no método de João de Deus. Amigos meus ficaram um pouco surpreendidos por eu fazer a alfabetização e diziam: ‘Isso pode ser perturbador, entrar em choque com o método que os professoras usem’. A minha resposta é: o método é sempre bom se for levado de princípio a fim.
Olhando para o seu percurso – secretário de estado, ministro, presidente do tribunal de contas, presidente do CNC, administrador da Gulbenkian -, com qual destes cargos se identifica mais e qual acha que desempenhou melhor?
A minha atitude perante a vida é esta: a melhor coisa é aquela que estou a fazer neste momento. E por isso estou a trabalhar com grande intensidade nas minhas novas funções na Fundação Calouste Gulbenkian.
A política é um meio que tritura aqueles que não estão preparados. Sentiu isso?
Nunca me esqueço que muitas vezes amigos meus diziam: ‘Ser ministro da Educação é uma coisa tremenda’. ‘Ser ministro das Finanças é terrível’. Fui ministro da Educação, das Finanças, Presidente do Tribunal de Contas. Cometi erros, como todos cometem, mas fiz sempre de modo a defender o meu país e olhe, não me queixo.
Muitos dos rendimentos da Gulbenkian vêm do petróleo. A crise do preço do petróleo está a afetar as receitas?
A fundação tem a sua própria sustentabilidade, a sua gestão não depende apenas de uma ordem de rendimentos, mas não gostaria de entrar em pormenores. É uma instituição sustentada e sustentável.
Mas a crise condiciona os orçamentos?
Qualquer instituição precisa sempre de considerar com muito cuidado todos os fatores e todos os riscos.
Há coisa de um mês o SOL noticiou que Guterres poderia vir a ser presidente da fundação, caso a sua candidatura a secretário-geral da ONU falhe. Vê isso com bons olhos?
Não me pronuncio sobre essa matéria até porque há um desafio mais exigente para o engenheiro António Guterres, que é a candidatura a secretário-geral das Nações Unidas. Penso que é um candidato ideal e é esse o objetivo imediato que deve ser prosseguido.