O que cola, afinal, a 'geringonça'? A ideia de que este é o início da "mudança" em relação às políticas da direita. Alinhados num discurso contra a austeridade de Passos e Portas, PS, BE, PCP e PEV quiseram mostrar na discussão do Orçamento para 2016 que é mais o que os une do que aquilo que os separa. Mesmo que se anunciem já temas difíceis de gerir à esquerda que vão continuar a pôr à prova as capacidades negociais de António Costa.
Depois de dois dias de esquerda unida contra a direita, Passos Coelho acusou o toque e assumiu-se até como o cimento que agrega esta maioria. "Estou desproporcionada, imerecida e ironicamente, a transformar-me no principal elemento de agregação e união da curiosa diversidade partidária da maioria", declarou o ex-primeiro-ministro, assumindo-se com sarcasmo como "um fator relevante de estabilidade para o Governo em Portugal". É que se há tema em que a esquerda mostrou estar de acordo é na condenação às políticas do anterior Governo e na denúncia do que consideram ser uma atitude subserviente em Bruxelas que tem prejudicado o país.
SOBRESSALTOS À VISTA Mas esta união à esquerda não acontece sem sobressaltos. E vêm aí vários. O primeiro é o da discussão sobre se Portugal deve ou não iniciar o debate na Europa sobre a renegociação da dívida. Mário Centeno deixou claro ontem no Parlamento que o Governo não tomará a iniciativa. "O Governo estará nesse debate. Não o suscitaremos, mas estaremos lá, quando esse debate se concretizar em termos europeus", disse o ministro das Finanças em resposta ao deputado comunista Paulo Sá que voltou a colocar a questão da negociação da dívida. A iniciativa comunista sobre o tema anunciada ontem no Parlamento adiantou, de resto, uma discussão que o PS preferia adiar e que o BE aceitou manter num grupo de trabalho cujas conclusões só deverão ser conhecidas dentro de seis meses.
Outra dor de cabeça suscitada pelos comunistas cuja discussão o PS teria preferido atrasar é a do futuro do Novo Banco. O PCP avançou ontem com a defesa de nacionalização do banco, mas no Governo este é um tema para discutir mais tarde e no BE também não há pressa. "Agora, é o momento do Orçamento, depois discutiremos isso", reagiu ao i a deputada bloquista Mariana Mortágua que, apesar de concordar com a ideia, opta por deixar a sua discussão para mais tarde.
O futuro da TAP pode juntar-se ao lote de sobressaltos à esquerda depois de um parecer da Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) abrir portas à reversão da privatização da companhia aérea. A ideia agrada a BE, PCP e PEV, mas no PS é vista como um problema maior do que a manutenção do acordo conseguido com os privados e que garante ao Estado 50% das ações da empresa e direito de veto no conselho de administração.
Fica por isso claro que passada a prova de fogo do primeiro Orçamento aprovado, vêm aí alguns focos de tensão. Mas para já PS, BE, PCP e PEV mostraram-se unidos na política do "virar da página da austeridade", mesmo que todos admitam que o documento que ontem aprovaram é "pior" do que o esboço orçamental que Mário Centeno tinha levado a Bruxelas.
DIFERENTES GRAUS DE ENTUSIASMO "Ao cumprir a palavra dada, o Orçamento do Estado merece o nosso apoio", afirmava o bloquista José Manuel Pureza, horas antes da votação. "Votamos convictamente a favor", corroborava o comunista António Filipe. À esquerda, este é visto como o primeiro passo de um processo de "mudança". António Costa concorda. "Se este fosse o último Orçamento ficava angustiado", confessava no primeiro dia de discussão parlamentar do OE o primeiro-ministro, numa resposta a Heloísa Apolónia dos Verdes, que criticava o documento por ser ainda curto na remoção da austeridade.
Carlos César reconhecia ontem no encerramento do debate que há nesta maioria parlamentar "diferentes graus de entusiasmo" em relação às soluções encontradas pelo ministro das Finanças Mário Centeno. Mas à esquerda pensa-se já à frente: primeiro na discussão na especialidade na qual Costa deixou já expressa a abertura a incorporar ideias de BE, PCP e PEV, depois no Orçamento para 2017.
O BE já só pensa, de resto, nos grupos de trabalho que irão começar a funcionar "nos próximos dias" – como anunciou Pureza – para encontrar soluções para o Orçamento que será discutido e votado daqui a cerca de seis meses. Essa será a altura mais crítica, porque nesse momento o BE insistirá de forma mais veemente na renegociação da dívida, que irá agora debater num grupo de trabalho com o Governo sobre a sustentabilidade da dívida externa.
Mas há outros temas que o BE leva para estes grupos de trabalho. Entre os pontos que o BE está a estudar para o próximo OE está um plano nacional contra a precariedade, um estudo sobre as pensões não contributivas como forma de combate à pobreza, a redução dos custos energéticos, a política de habitação e alterações à política fiscal no sentido de "mais justiça, mais redistribuição e mais transparência".
A aproximação à esquerda faz-se, porém, muito antes de esses grupos de trabalho começarem a reunir, na discussão na especialidade do Orçamento do Estado para 2016 que agora se inicia. "No diálogo interno não desprezámos nem prescindimos das diferenças entre PS, BE, PCP e PEV, mas reunimos as semelhanças e mobilizámos as suas energias sem exclusões nem preconceitos, e iremos aprovar as propostas de alteração que, no nosso entendimento, melhoram o Orçamento", anunciou o líder parlamentar do PS, Carlos César.
César antecipou, aliás, um dos momentos que podem vir a ser de turbulência na maioria de esquerda, para deixar garantias de que a orientação política contida no Orçamento não vai mudar no Programa de Estabilidade e Crescimento e no Plano Nacional de Reformas que o Governo terá de elaborar e enviar a Bruxelas nos próximos meses. Fica dada a garantia numa altura em que o espectro de medidas adicionais continua a pairar sobre o Orçamento ontem aprovado. Mário Centeno admitiu que há medidas "em estudo" para apresentar "quando forem necessárias". Mas o ministro adjunto Eduardo Cabrita desvalorizou a ideia do plano B que a direita acusa o Governo de ocultar. "O nosso plano A é aprovar este Orçamento e o plano B é executá-lo com rigor e determinação", declarou Cabrita no discurso com que encerrou o debate. Uma coisa é certa: Centeno traçou ontem uma linha vermelha, ao assegurar que quaisquer medidas que possam vir a ser necessárias em caso de derrapagem orçamental, não passarão por cortes em salários e pensões nem pelo aumento do IRS.