Margarida Martins: “Sou uma mulher que vem de muitos mundos”

    

Catar o vento é passá-lo a pente fino, sacar-lhe os parasitas, amainá-lo? Catar é buscar. No alto do campanário está o galo, sempre capaz de galar um novo dia, de o engalanar. Tal qual a Margarida, cujo nome significa pérola. A ostra, rugosa e preta como a noite, faz nas profundezas a pérola, para não morrer. O fulgor da pérola, ganho no negrume do fundo do mar, contra ventos e marés.

Puro, como as casas e as gargalhadas galhardas que a Margarida dá. O vento passa, e os tempos e as vontades.

Mas a Margarida não se fica. Finca-se. No alto do Bairro Alto, lá há-de estar ela, a catar um pouco de beleza, para partilhar. Contra os ventos do mundo e da cidade, que andam ruins e desatinados. Abençoada”. As palavras são de Maria Velho da Costa, no texto “Catavento”, escrito para Margarida Martins, a ex-presidente da Abraço e atualmente presidente da junta de freguesia de Arroios, com uma gargalhada que tem tanto de contagiante quanto de assustadora.

Nos últimos dois anos tem ouvido muitas vezes a piadola “A Margarida é que é a presidente da junta”?

Sim, mas eu também sinto que sou mesmo uma verdadeira presidente de junta. Ainda durante a campanha já andava a distribuir autocolantes com o meu telefone e a dizer ‘eu ajudo a resolver’.

E era mesmo o seu telefone?

Sim.

E telefonam-lhe?

Muito. E eu respondo às pessoas todas. E são mais de 30 mil em Arroios. É essa a minha postura. Todos os dias acordo e vejo o email geral da junta. As pessoas ficam muito admiradas quando eu até ao fim de semana lhes respondo. Mas o território de Arroios é muito grande. É uma extensão enorme, multicultural e com problemas completamente diferentes. E eu tenho de conhecer muito bem todos os problemas da freguesia. Por isso trabalho doze horas por dia. Controlo, sou muito ‘controleira’, mas isso faz parte de uma educação que tive. Devo ser a presidente de junta que mais mensagens manda à Câmara Municipal de Lisboa. Devo ser das mulheres mais chatas do mundo, mas amo aquilo que faço. A partir das 8h da manhã já ando a ver onde há mais lixo, onde os carros estão em cima dos passeios e provocam falta de mobilidade às pessoas… A presidente de junta tem de conhecer o território, os problemas, tem de atender o telefone – ainda ontem me ligou a dona Odete que tinha uma infiltração na cave e me ligou para ver se eu podia ajudar. Ser presidente de junta não pode ser só assinar papéis. Tenho de saber de todas as áreas. Não gosto de ser apanhada sem saber. E felizmente as pessoas estão a falar de nós e temos a freguesia toda numa grande ebulição. Um bom exemplo é a piscina onde investimos e que neste momento é um sucesso. Gastámos 450 mil euros do nosso dinheiro, ainda estamos à espera de saber se a câmara vai apoiar. Mas é uma partilha para todas as freguesias ao lado e isso é uma mais-valia.

Já tinha um laço especial com esta zona?

Só depois de aceitar comecei a pensar que este território sempre fez parte da minha vida. Ia a uma loja em frente ao mercado de Arroios com a minha mãe e madrinha fazer fotografias. Ao mercado do Saldanha ia com o meu pai comprar amêijoas para fazermos carne de porco à alentejana. O mercado do Forno do Tijolo era onde ia com a minha avó. E até nasci na freguesia! Nasci na maternidade de Santa Bárbara, que à data pertencia à freguesia do Socorro mas agora é Arroios. Apesar de, com os anos, me ter virado mais para o lado do Bairro Alto, este território fez parte da minha vida.

Mas compreende que, quando o seu nome surgiu, ninguém percebeu bem porquê?

Sinto que o dr. António costa me convidou para eu partilhar com ele uma mudança que ele queria fazer e uma visibilidade que ele queria dar a esta zona da cidade, que durante anos foi muito ignorada e que agora está a ser falada pelo mundo inteiro.

Acha que era preciso um perfil de uma mulher imponente?

Não sei, tem de perguntar ao Dr. António Costa.

Mas tem noção de que não saberemos apontar o nome de muitos presidentes de junta, mas toda a gente sabe que a Margarida Martins é a presidente da junta de Arroios.

Não sei, mas acho que a nossa força tem a ver com o empenhamento e o amor que pomos nas coisas. E eu sou uma mulher que me envolvo. Sou uma mulher de lutas e de causas. Gosto de estar próxima das pessoas, emociono-me, sou uma mulher inquieta. Sou uma mulher que não sou fácil, que tenho zangas e que às vezes respondo. Respondo a toda a gente, e respondo diretamente, não fico calada. E não aceito que me tratem mal.

Mas quando não tem razão também pede desculpa?

Peço, quando não tenho razão peço desculpa.

Passou-lhe pela cabeça que se pudesse apaixonar assim tanto por este cargo e por esta freguesia? Porque levava 20 anos mais de 20 anos da Abraço e de repente quase que descobriu uma paixão ou também havia já o desgaste da outra luta?

Já tinha preparado a saída da Abraço. E aqui na junta, efetivamente tenho feito coisas que me têm deixado muito feliz e orgulhosa, como ter dado à população a nova piscina de Arroios. Para mim foi muito importante. Cheguei ontem à piscina e vi os idosos todos contentes a dizerem “senhora presidente está tão bom, está tão confortável, está tão agradável, está tão asseado”. As pessoas nem sabiam que havia uma piscina em Arroios, e agora vão saber e a piscina está magnífica. Além disto, nestes últimos anos fizemos quatro parques infantis, que também me orgulha muito. Mas ainda há muito para fazer. Mas temos mais habitantes desde que estou na junta. E temos uma com 107 anos de idade!

Qual é a grande pedra no sapato que ainda não conseguiu resolver?

A pequena obra é o que nunca se resolve. O problema de cada um é a grande obra que temos de fazer. Mas temos dois grandes problemas: um é a integração dos sem-abrigo da freguesia, sobretudo na Almirante Reis, o outro é uma grande educação que tem de ser dada às pessoas ao nível da higiene urbana. E, uma vez mais, esta é uma questão que tem de se começar pelas crianças.

Se tivesse sido convidada por outra força política que não o PS tinha dado a mesma resposta?

Não. O grande sedutor chama-se António Costa. Como se vê. (risos)

Mas alguma vez tinha pensado ser presidente de uma junta de freguesia?

Uns dez anos antes, alguém me perguntou o que é que eu gostava de fazer depois da Abraço e eu, do nada, disse: “Gostava de ser presidente de uma junta de freguesia”. Mas nos meses antes da campanha andei a conhecer a freguesia ao pormenor, com uma máquina fotográfica na mão.

Mas quando se afasta da Abraço foi com a intenção de ser presidente da junta?

Já tinha preparado o território durante sete anos, sabia quem é que podia ficar quando eu saísse.

Para nós que estamos deste lado, a Abraço era a Margarida sem a Margarida não havia a Abraço.

Mas havia. Há. O problema de outras associações é que não pensam no futuro, e não metem gente nova. Quando o Dr. António costa me convidou e eu aceitei, já tinha tudo preparado para a minha saída. E mesmo assim só saí mesmo quase ao pé das eleições. Mesmo que não tivesse ganho as eleições tinha saído da Abraço.

Mas foi uma decisão dolorosa?

Não. Tenho uma coisa na vida que é: eu não sei fazer lutos, não faço lutos. Não sei se é bom ou mau, provavelmente tem consequências para a minha saúde. Desde que saí fui à Abraço duas vezes em duas festas. Mas a Abraço pode sempre contar comigo para o que quiser. Mas nunca interfiro no trabalho da Abraço. Sou sócia número 1 e isso ninguém me tira. A Abraço será sempre a minha filha mais velha.

Uma associação como a Abraço faz hoje menos sentido do que fazia quando foi criada?

Não, porque continua a haver muita discriminação. As pessoas não podem dizer que são seropositivas. A discriminação existe mesmo e continua a ser muito forte. A Abraço é uma associação muito grande, tem 400 pessoas a trabalhar, tem casas de acolhimento para crianças, tem uma série de iniciativas que as pessoas nem imaginam.

O que a motivou para criar a Abraço foi uma dor muito pessoal…

Foi. Foi a morte de um amigo, o João Carlos. Acompanhei o processo todo, tive muito apoio de muitos amigos. Consegui quebrar muitas barreiras, entrar num hospital não era fácil. E eu entrei. E, por exemplo, mudei as camas todas num mês, 26 camas.

Como assim?

Os doentes infetados não tinham camas articuladas, o que era fundamental. Andei a pedir 70 contos para cada cama. E as pessoas davam-me. Uns meses depois criei a Abraço. E também com a ajuda de amigos conseguimos construir um corredor que liga dois edifícios porque sem esse corredor os doentes tinham de andar à chuva.

Mas o que é que motiva uma mulher que tem um grande amigo a morrer a ajudar toda uma enfermaria?

Venho de uma família politizada, o meu pai era comunista, a minha família era anarco-sindicalista… Fui muito educada a olhar para o todo, e quando comecei a acompanhar o João Carlos sentia muita vergonha de tratar só dele e não tratar dos outros. Ainda por cima, a minha mãe tinha sofrido muito, tinha estado seis anos internada em São José, com uma tuberculose, tinha vivido a segregação por isso e era algo que a tinha marcado muito. E ela foi a pessoa que mais amei na vida. Penso que essas marcas ficaram sempre em mim. Nunca achei que estava sozinha neste mundo. Também por isso estive, desde muito nova, envolvida no movimento associativo. O meu primeiro emprego foi ser professora de uma criança que estava no Pulido Valente ligada a um pulmão artificial. Ia para lá uma hora por dia e acabava por ficar a tarde toda ali. E depois disso estive numa editora onde batia à máquina livros, o primeiro dos quais do Roland Barthes. Depois fui, muitos anos, secretária de administração de uma empresa de construção civil. E a seguir trabalhei com o Manuel Reis. Ou seja, eu sou uma mulher que vem de muitos mundos. O meu pai era operário e a minha mãe porteira, mas eu ouvia música clássica com os meus vizinhos, um dos quais era ministro de Salazar. Sempre tive essa educação de me dar com toda a gente. E é isso que hoje em dia passo à minha Leonor. Ela tem imensas regras porque sou uma mãe muito autoritária, e quero que ela seja generosa, atenta. E feliz. E eu sou feliz com ela e com as minhas duas gatas.

Hoje em dia quase se deixou de falar de sida.

E isso pode ser muito perigoso porque as pessoas desleixam-se.

A Abraço foi a causa da sua vida durante mais de duas décadas. Mas também lhe trouxe muitas amarguras?

Muitas, pessoais até. E isso alterou até a minha saúde. Havia pessoas que pensavam que nunca ia conseguir ultrapassar, mas consegui, apesar de ter mazelas de dor dentro de mim. Mas não me mataram.

O que mais a magoou?

Quando disseram que roubei dinheiro da Abraço e que eu tinha propriedades que nunca tive, o que era tudo mentira. Foi uma campanha orquestrada. Mas devo aos meus amigos e à minha equipa terem ficado todos, todos, ao meu lado.

Percebeu a origem dessa campanha?

Percebi, mas não quero falar sobre isso. Quem criou isso é jornalista, e nunca pagou o que devia ter pago. Ao fim de sete anos aparece uma noticia de três linhas a dizer que eu tinha sido ilibada e que tinham de me pagar uma indemnização. Foi um período muito doloroso.

Com a devida distância, acha que esse seu feitio furacão lhe saiu caro em vários momentos da vida?

Sim. Uma vez fui convidada para participar numa conferência no Brasil, juntamente com o dr. Mário Soares e a ministra da Cultura. Sabe como é que os brasileiros me chamaram? A ventania de Portugal. E tenho um texto da Maria Velho da Costa, chamado “Catavento”, que me chama uma ostra rugosa, mas que estou sempre atenta às pessoas. As pessoas gostam de achincalhar e sobre mim diziam muitas vezes que eu era a gaja que tinha sido porteira do Frágil. Tenho muito prazer em ter sido porteira do Frágil, deu-me um mundo que muitas pessoas não tiveram. Mas talvez essas pessoas nunca tenham tido a oportunidade de falar com o Jack Lang como eu falava. Mas uma pessoa com a minha forma de estar tem de ter amigos e inimigos.

Mas também nunca se acanha nesse seu feitio…

Não. As pessoas têm é sempre uma postura de ‘cuidado com isso’. Mas eu acho mesmo graça a isso (risos).

Há cerca de um ano o seu feitio também esteve no centro de uma grande polémica, relativamente aos cartazes do PS, com figurantes que alegavam ser desempregados.

Chorei muito. Fui muitos anos assessora de fotografia do Mário Cabrita Gil, com quem vivi, e por isso sempre ajudei as pessoas que precisavam de ajuda nessa área. E o que me pediram foi se encontrava pessoas com determinados perfis. Eu até ia de férias, dei os contactos que me pediram e fui-me embora. Fiquei muito magoada e remeti-me ao sigilo apesar de todos os jornalistas andarem atrás de mim. Foi o Sá Fernandes, meu advogado, que me disse que não podia ficar calada e por isso emiti um comunicado.

Quando viu o resultado final da campanha o que pensou?

A forma como foi feita não resultou. E não me obrigue a falar mais disso porque é uma mágoa que só há pouco tempo superei.

Também se recusou a entregar atas ao PSD, a propósito de acusações de favorecimento.

Limitei-me a seguir a indicação dos juristas da junta. Tenho aqui pessoas a trabalharem de todos os espetros políticos.

Nunca se cansa de si e dessa sua energia?

Não. Eu gosto de mim! (risos) E quando eu chego a casa sou outra pessoa. A minha casa é a minha concha. Quando ponho um pé em casa passo a ser a mãe, a chefe de família, a amiga. É o meu ninho. Mal saio de casa, mudo o interruptor e passo a ser a Margarida Martins que as pessoas conhecem.

A sua filha Leonor foi responsável por esse seu lado mais apaziguado?

Não, sempre fui assim. Ela, às vezes, até tenta mostrar que é a filha da presidente da junta e fica toda inchada, mas digo-lhe logo ‘Nem penses, para seres alguma coisa na vida tens de lutar’. Não é fácil ter uma mãe como eu.

Ela faz-lhe muitas perguntas sobre o porquê de a ter adotado?

Não. Ela sabe, desde o princípio, que é adotada, sabe que estava na Misericórdia, sabe a história toda dela.

Foi a Margarida Martins que adotou a Leonor ou foi a presidente da Abraço?

Foi a Margarida Martins. A Leonor é um processo que não é simpático, mas será ela que o contará, um dia, se quiser. Agradeço às pessoas que me ajudaram. Eu conheci-a como presidente da Abraço, porque me falaram de uma menina que estava institucionalizada e que não tinha visitas, e eu pedi para a visitar. E comecei a visitá-la três vezes por semana. As pessoas diziam ‘lá vem aquela gaja da Abraço!’. Mas eu ia porque ela não tinha ninguém, mas eu não queria ter filhos, tinha tido uma gravidez ectópica aos 26 anos. Mas criei um laço afetivo com ela. Mas o maior laço foi culpa dela. Um dia, quando estou a chegar, o porteiro diz-me que ela tinha estado o dia todo à porta à minha espera. Quando cheguei ao pé dela perguntei o que é que ela tinha estado ali a fazer à porta e ela olhou para mim e disse “Mã”. A Leonor aos dois anos e tal ainda não falava, só grunhia. Fui para casa a pensar que era uma egoísta, que tinha casa, quarto, amigos, estrutura… E ela não tinha ninguém. No dia seguinte meti os papéis. Ela é minha filha, tem o meu nome, é a minha herdeira.

Nunca precisou de ajuda profissional para enfrentar todos os fantasmas que foi ganhando ao longo da vida?

Não. Não tenho feitio para andar no psicólogo. Mas há uma coisa que eu tenho: engordo sempre que há problemas. Acho que é o meu organismo a preparar-se para os embates.

Já desistiu do combater do peso?

Não, nunca. Agora tenho de perder mais 20 quilos.

Porque é que tornou pública a sua luta com o peso e inclusive que tinha posto uma banda gástrica?

Porque as pessoas têm medo de falar das coisas e de assumir os seus problemas. Tive imensas pessoas a ligarem-me para agradecer eu ter contado a minha história. As pessoas não imaginam o que é querer fazer a sua higiene pessoal e não conseguir!

Costuma dizer que nunca deixou de se sentir uma mulher sexy. É algo que realmente sente?

Aos 63 anos já não se sentem as mesmas necessidades. Hoje em dia não tenho ninguém porque não tenho tempo. Mas ainda hoje, se quiser ser sensualona, sou. Mas acho que os homens têm medo de mim. Nunca me senti menos mulher por ser gorda.

Voltaria a posar nua como posou para um convite de aniversário do Frágil?

Ai, voltava! Acho lindo! Só não estava à espera é que o Presidente da República [Mário Soares] me dissesse que tinha em casa os dois postais, frente e verso… (risos) O Frágil deu-me isto tudo.

Que lugar mágico era esse?

Era um lugar onde qualquer coisa virava um acontecimento, onde tudo era especial. O Manuel Reis foi um homem que investiu na cultura em Portugal. Passava-se tudo ali: eu fiz um casamento à porta do Frágil. E ainda estão casados. E têm dois filhos!

E continua a ter muita gente zangada consigo porque não os deixou entrar?

Se estão, que vão ao psiquiatra!

Ainda há muita gente que a chame Guida Gorda?

Duas ou três pessoas. E eu gosto.

Fotografias de Diana Tinoco