Pão e circo

Quando o cavaquismo chegou ao fim e António Guterres ascendeu a chefe do Governo, escrevi um artigo chamado Pão e Circo (em latim, Panis et Circenses), infelizmente premonitório.

Depois de dez anos de políticas de rigor – escrevia eu – iniciava-se um período que seria marcado pelo despesismo e a satisfação das massas.

Depois do ‘pai tirano’, vinha aí o tio simpático e bem-falante, desejoso de agradar.

«As pessoas não são números», era a ideia difundida aos quatro ventos.

O economicismo frio e distante, sem calor humano, daria lugar – dizia-se – ao humanismo afetuoso, onde «as portuguesas e os portugueses» estariam em primeiro lugar.

Mesmo no PSD havia muita gente seduzida pela simpatia e pela verve de Guterres – que contrastava com a rigidez e falta de simpatia de Cavaco.

E depois foi o que se viu.

Depois da festa, que teve o seu auge na Expo 98, o país foi sempre a cair.

Incentivados pelas palavras mansas, os portugueses começaram a consumir muito mais do que podiam.

As importações dispararam, os bancos endividaram-se – e seis anos depois o país estava mergulhado num pântano.

Durão Barroso e Manuela Ferreira Leite, que vieram a seguir, impuseram um duro programa de austeridade que infelizmente foi interrompido pela ida de Durão para Bruxelas.

O período que estamos a viver faz-me lembrar estranhamente essa época.

Os comentadores elogiam o clima de festa em que Marcelo Rebelo de Sousa tomou posse e dizem, contentes, que o país se distendeu, se ‘descrispou’; andávamos todos macambúzios e de repente passámos a andar todos alegres.

Santa ingenuidade!

Portugal continua periclitante – e a mensagem que os governantes deveriam dar era uma mensagem de exigência, de rigor, de esperança, sim, mas uma esperança alicerçada em trabalho e não em belas palavras.

Na tomada de posse, Marcelo deveria ter optado pela modéstia, pela contenção, pela sobriedade, por uma cerimónia digna mas simples.

Mas deu exatamente os sinais contrários, encenando uma espécie de coroação.

Foi como se dissesse: a partir de agora todos podemos cantar e dançar, pois os maus foram-se embora.

Com o ‘serventuário da senhora Merkel’ fora de S. Bento e o seu ‘cúmplice’ fora de Belém, os portugueses podem finalmente respirar fundo e começar a ter uma vida boa.

Sem Passos Coelho e sem Cavaco a azucrinarem os pobres cidadãos, tudo será mais fácil.

António Costa vai dar o pão (devolvendo o que foi ‘roubado’ aos portugueses) e Marcelo oferece o circo, a alegria, o espetáculo.

Há gente que acredita genuinamente nesta ideia – e aí está o perigo que nos espreita.

Até porque os dois homens que estão hoje no topo do Estado – ambos produtos da Faculdade de Direito – gostam mais de palavras do que de atos.

O seu talento principal não é concretizar – é falar, embrulhar, iludir, alindar…

Privilegiam a palavra em prejuízo da ação.

Há muitos anos, em conversa com Francisco Pinto Balsemão e Mário Soares, este dizia ao outro: «O Saraiva não gosta de pessoas como nós, de bons vivants, gosta de caras de pau como o Cavaco e o Eanes».

Não se trata de ‘gostar’ mas de ‘confiar’.

Confio pouco em políticos que falam muito, que dão palmadinhas nas costas, que têm medo de dizer que não.

Confio mais em políticos que falam pouco mas fazem.

Que são exigentes consigo e com os outros.

Confio pouco em políticos populares – que fazem tudo o que as pessoas querem.

Confio mais em políticos que não fazem nada para ser populares, que não vão na onda, que têm coragem para enfrentar as ideias feitas e as facilidades.

Quando um político tem 90% de popularidade, como Marcelo, eu desconfio.

Se um político agrada a todos, é porque não afronta nada nem ninguém.

Perdoe-me Marcelo Rebelo de Sousa mas a sua coroação – que concorreu com a da Rainha de Inglaterra (e Marcelo não quererá ser uma ‘rainha de Inglaterra’) – deu os sinais opostos àqueles de que neste momento precisamos.

Precisamos de exigência, precisamos de responsabilidade, precisamos de trabalhar e de produzir – e só depois podemos gastar.

A ideia de que a festa vai começar porque os maus da fita, aqueles que queriam o mal dos portugueses, já se foram embora, é perigosíssima e pode-nos vir a custar muito caro.

Por este caminho, acabaremos como no tempo de Guterres: no pântano.

jas@sol.pt