Em 2002, o Hospital de Santa Maria foi condenado a pagar 15 mil euros a um doente que ficou cego de um olho após apanhar uma infeção nos cuidados intensivos, caso que remontava a 1993. Foi dado como provado que a infeção foi contraída enquanto o doente recuperava de uma operação ao coração e que o hospital tinha conhecimento do risco. «Age de maneira eticamente censurável e reprovável, e por isso com culpa, o hospital que não toma todas as medidas de precaução e todas as providências ao caso aconselhável no sentido de erradicar a bactéria serratia no local altamente propício à sua existência e face ao estado debilitado pós-operatório dum paciente, vindo o mesmo a ser contagiado» – lê-se no acórdão que, em 2005, negou provimento ao recurso do hospital.
Este é um dos casos recordado por André Dias Pereira, especialista em Direito da Saúde. O jurista admite que as infeções associadas aos cuidados de saúde já motivam muitos processos judiciais, mas quase sempre de responsabilidade civil da instituição pública ou privada. Também poderia haver lugar a acusações criminais, por ofensa à integridade ou até homicídio por negligência, mas disso não há memória: «Havendo taxas de infeção manifestamente exageradas, poderá colocar-se a hipótese de responsabilidade criminal. Mas é um caminho difícil».
O problema, que acaba por se colocar também na responsabilidade civil, está na dificuldade em estabelecer o nexo de causalidade. João Medeiros, advogado especialista em negligência médica, explica que este tipo de casos é ainda mais complexo. «A partir do momento em que estamos num local com pessoas doentes, nunca se pode dizer que há risco zero de contrair uma infeção», diz. Assim, a responsabilização vai depender de o hospital ter cumprido os protocolos e boas práticas regulamentadas para prevenir infeções, sejam obrigações de desinfeção ou outros cuidados de higiene e controlo.
E aqui os casos podem tornar-se ainda mais complicados: os administradores e profissionais podem invocar falta de meios financeiros e humanos. «Em última instância, pode acabar-se a processar o próprio Estado por não dar condições aos hospitais para cumprirem os regulamentos (por exemplo, as desinfeções protocoladas)».
Apenas seis queixas
Apesar de já haver casos, Dias Pereira não traça um cenário animador. «Os doentes enfrentam processos longos, difíceis e de sucesso incerto». João Medeiros, que não tem conhecimento de casos concretos, aponta a morosidade dos processos nos tribunais administrativos – com dificuldade em julgar casos tão técnicos – e o valor das indemnizações como fatores pouco motivadores para doentes e famílias. «Aqui a vida de uma pessoa vale 50 mil euros. Litigar 10 ou 15 anos para conseguir 50 ou 60 mil euros acaba por ser pouco entusiasmante para as famílias e até para os escritórios de advogados».
Perante indícios de crime, o Ministério Público pode iniciar diligências. O SOL procurou saber se há algum inquérito em curso, até na sequência dos surtos tornados públicos nos últimos meses na região Norte, que chegaram a ser oficialmente associados a mortes. Não foi possível, porém, obter uma resposta da Procuradoria-Geral da República em tempo útil.
No que toca à iniciativa de particulares, pelo menos um indicador sugere que esta não é uma área em que, mesmo fora dos tribunais, exista muita pressão de queixas. Apesar de as infeções hospitalares estarem associadas a sete vezes mais mortes do que os acidentes de viação, no ano passado a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) só recebeu três reclamações sobre este tópico, num universo de 49 mil casos.
A ERS revelou ao SOL que este ano já deram entrada outras três reclamações e informou que analisa todos os casos divulgados pela comunicação social, no sentido de verificar «se os procedimentos internos internos adotados pelos hospitais foram os corretos face aos riscos de infeção».
Quando os hospitais não respondem, são alvo contra ordenação. Já quando não estão em vigor os procedimentos adequados, a ERS pode impô-los.
Em ambos os casos, e não havendo cumprimento, as sanções às instituições podem ir até 44.891 euros. Neste momento estão em curso processos relacionados com os recentes surtos em Vila Nova de Gaia, Coimbra e no São João (Porto), este último conhecido esta semana.
Informações soft
João Meira e Cruz, coordenador médico da Best Medical Opinion – empresa que elabora pareceres e perícias médicas usadas em litígios judiciais e extrajudiciais –, diz que em seis anos de atividade nunca analisaram um caso direcionado especificamente a sequelas de infeções hospitalares, embora estas por vezes surjam como «intercorrências».
O cirurgião encontra uma explicação ainda mais a montante: «As pessoas não estão despertas para a possibilidade, nem digo de avançar com um processo, mas de pedir esclarecimentos. E, quando pedem, as informações prestadas pelas unidades são muito soft. Só quando alguém questiona concretamente alguma coisa é que existe um aprofundamento de todo o historial».
Mais pressão
Com experiência no público e no privado, Meira e Cruz admite que os protocolos de prevenção existem mas «falta controlo». E está convicto de que mais queixas levariam a uma maior responsabilização das unidades e dos profissionais, dando meios às equipas de controlo para verificarem os serviços e pressionar os colegas. «Tirando os patologistas, os infecciologistas ou os médicos de saúde pública, para os outros esta questão não é uma prioridade. Podem ter um caso e prestar mais atenção mas o problema dilui-se», diz.
Dias Pereira e Medeiros concordam que mais casos na Justiça teriam um efeito preventivo. Este último salienta que será sempre difícil estabelecer relações de causalidade e nem tudo é possível – como ligar o facto de os médicos irem à cantina ou à casa de banho de bata e estetoscópio a uma infeção particular. Mas se as queixas levassem a mais orçamento para prevenir, isso ajudava: «Se os profissionais começassem a ser alvo de procedimentos, iriam pressionar mais para garantir condições de trabalho».