Alíngua inglesa deve-lhe meia centena de provérbios, expressões vivas que se incrustaram na alma da própria língua, um vocabulário de 30 mil palavras, que pulsa, conspira, sibila, geme, espuma de raiva, alarma os deuses e intriga o demónio. 400 anos depois, William Shakespeare é ainda um destino, uma obra que não se deixa vencer e espelha imortalmente os conflitos íntimos e coletivos da humanidade.
D.H. Lawrence falou do deslumbramento que sentia ao ler o bardo, pela forma como vidas e figuras às vezes tão banais eram capazes de meditações ou acessos explosivos numa linguagem de tão grande beleza. O encanto de Shakespeare começa por aí. Boa parte das palavras que planta na boca dos seus personagens ele mesmo as concebia, ator toda a vida. Quando escrevia não descia do palco, trabalhando, como já foi sugerido por especialistas na sua obra, com o furor experimental de um químico, alterando a composição nuclear das palavras, além de bater, partir e juntar, pondo em causa a sua morfologia, sendo que em palco não havia limite para o acordo entre o ator e o seu público. E é precisamente da sua capacidade de ser o Janus dos poetas, de usar em tudo o que fazia duas caras, como notou John Dryden, que Shakespeare consegue ser e não ser as suas personagens, estar com elas nos seus dramas, vivê-los e superá-los. Este dom de ser múltiplo levou outro poeta, Coleridge, a cunhar em sua honra o magistral termo a «mente-míriade».
‘A quantidade de tinta que se tem gasto com ele é grotesca’
A sua biografia permanece envolta num tão cerrado mistério que a busca por pistas sobre a sua passagem pela terra se tornou uma espécie de demanda do Graal. No volume que lhe dedica, Bill Bryson nota que «calculada por alto, a quantidade de tinta que se tem gasto com Shakespeare é assombrosamente grotesca», referindo que a revista bibliográfica Shakespeare Quaterly regista todos os anos o aparecimento de quatro mil novas obras de fôlego, entre livros, monografias e outros estudos. E a razão porque o vulto de Shakespeare mantém um tão grande apelo é o facto de em vida ter deixado apenas as peças suficientes para que essa ausência possa aguçar mais ainda a curiosidade dos seus devotos.
Não há sequer a certeza se aquele rosto que logo reconhecemos como seu lhe pertence de facto. Pouco ou nada se sabe sobre a gravura de cobre que aparece no frontispício do famoso First Folio, e que só é exemplar pela quantidade de defeitos nas feições. Finalmente, há a estátua pintada e em tamanho natural que constituí a peça central do monumento a Shakespeare na Holy Trinity Charch, em Stratford-upon-Avon, onde está sepultado. Apesar do valor artístico diminuto, «tem o mérito de ter sido vista e presumivelmente aceite como satisfatória por pessoas que conheceram Shakespeare». Como nota Bryson: «Shakespeare é simultaneamente a mais famosa e a mais obscura de todas as personalidades conhecidas».
A insuficiência burocrática
Ao fim destes 400 anos, os investigadores localizaram não mais do que cerca de cem documentos sobre o bardo e a sua família próxima, entre registos de batismo, títulos de posse de propriedades, certidões de impostos, promissórias de casamento, mandados de penhora, autos judiciais, e por aí adiante. Mas a burocracia, ainda que seja útil na hora de organizar as sociedades e de fazer o rastreio dos negócios, deixa de uma vida um testemunho demasiado ténue. Foi uma sorte que as suas palavras – cerca de um milhão – nos tenham chegado. Mas há também uma infinidade factos que se desconhecem: não se sabe sequer quantas peças de teatro escreveu ou a ordem em que escreveu aquelas que conhecemos.
No fim, nenhuma das circunstâncias pessoais de Shakespeare, fosse o seu lugar de nascimento, filiação, educação, círculo de amigos ou outros, fizeram dele um homem especialmente notável no seu tempo. De resto, a sua morte a 23 de Abril de 1616 (o mesmo dia em que normalmente é dado por nascido 52 anos antes, em 1564, o dia de S. Jorge) passou largamente despercebida, e não houve nenhuma grande cerimónia quando os seus restos mortais foram colocados na Holy Trinity Church. Ninguém se lembrou de propor que ele fosse enterrado na Abadia de Westminster ao lado de Chaucer ou Spenser, honra que foi concedida a Francis Beaumont, um colega dramaturgo que morreu no mesmo ano, ou ao seu amigo Ben Jonson, o primeiro escritor a reconhecer a importância fundamental da obra de Shakespeare na mais vasta paisagem da literatura e não apenas como um escritor muito popular.
É também essa a distância a que estamos hoje do homem que escreveu Hamlet, Macbeth, Júlio César e Romeu e Julieta. Shakespeare, de quem hoje é comum dizer-se que nos anos finais se aburguesou, trocando Londres pela Stratford que o vira nascer e vivendo de rendas, não terá vislumbrado o império de influência que a sua obra viria a deter. Era então reconhecido como um mestre na arte de entreter, alguém que escrevia tanto para os iletrados que assistiam às suas peças de pé (vibrando como hoje os adeptos num jogo de futebol), como para a elite sentada em cadeiras almofadadas. As suas peças misturavam o que era de bom e mau tom, a elevação e o mais ordinário. Se a sua escrita se notabilizou pelas alturas que escalou em enlevos cheios de subtileza e passagens de delicadeza insuperável, também lá estão os trocadilhos obscenos e as canções populares. Algumas das suas peças, que chegavam a prolongar-se até às quatro horas, não podiam dispensar as cenas de esgrima a intervalos estudados para não permitir que a audiência desfalecesse.